Quem quer ser viajante?

Leio a respeito de Meike Winnemuth, jornalista alemã que em 2010 ganhou um prêmio do tipo Quem quer ser um milionário? num quizshow. O que ela fez no ano seguinte foi passar doze meses viajando pelo mundo e morando em doze cidades, uma nova a cada trinta dias. Esse seu projeto teve desde então outros desdobramentos: livros, blog, sucesso estrondoso.

Winnemuth fez o que a maioria das pessoas deseja (secretamente ou não): ousou estabelecer sua liberdade, configurada através de um ano sabático, com o grande fetiche de um turismo prolongado. Mas por que será que viajar tem um poder de sedução tão grande? Há pesquisas que indicam que conhecer uma nova cidade ou país, realizar a tal viagem dos sonhos, promove um tipo de felicidade equivalente ao êxtase amoroso. Para além de todo tipo de mecanismo químico que nos invade quando estamos numa aventura (estou me referindo à liberação de dopamina pelo entusiasmo, excitação da surpresa), viajar traz aprendizados incomparáveis. Conhecemos culturas, hábitos, práticas idiomáticas… mas o mais importante é o autoconhecimento que vem junto. Aprendemos a sair de situações inusitadas, estressantes ou até perigosas.

Como diz o autor holandês Cees Nooteboom em Hotel Nômade, um de seus livros sobre esse assunto peregrino, “viajar também é algo que se tem de aprender, é uma permanente transação com os demais na qual, ao mesmo tempo, se está sozinho. Nisso reside também o paradoxo: uma pessoa viaja sozinha num mundo dominado pelos outros”, porque “por mais que você esteja só, sempre estará rodeado de outras pessoas, de seus olhares, de sua proximidade, de seu desprezo, de sua expectativa, e assim cada lugar é diferente e as coisas nunca são como de hábito, como em teu próprio país”.

Eis porque “o verdadeiro viajante se encontra continuamente no olho do furacão”, e “quem aprende a olhar por este olho talvez aprenda também a distinguir o essencial do fútil ou, ao menos, a ver em que se distinguem e em que são iguais as pessoas e as coisas”. Ao fim e ao cabo, “o mundo – com toda a sua força dramática e sua absurda beleza e sua assombrosa turbulência de países, gente e história – é um viajante ele mesmo num universo que viaja sem cessar”.

Além de todos esses motivos anteriores, elenco mais dois, fundamentais: o valor terapêutico e criativo do processo. Estar em trânsito é olhar as coisas sob novas perspectivas; é afastar-se dos problemas, constatar sua mesquinhez e ameaça ilusória. É, enfim, coletar histórias, expandir-se para a vida com um poder de recepção que perdemos nos locais rotineiros. Eu não teria escrito os meus romances Turismo para cegos e Em plena luz, sem ser uma viajante contumaz. Quando viajo, alcanço o clímax de observação crucial para fazer arte. Posso dizer, exatamente como Nooteboom, que meu modo de viajar “esteve sempre associado à escritura, à leitura e, sobretudo, à vista”.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte d’O Povo)

FICHAS

Dia de eleição, e você deve estar pensando que meu texto vai tratar de fichas criminais… Até poderia, mas escolhi a literatura, o que equivale a dizer: lido com ficções, uma categoria que a política não abarca (ou, pelo menos, não deveria). É bem verdade que os limites do surreal andam cada vez mais elásticos; extravasam para o cotidiano de um jeito tão reiterado que algumas pessoas se tornaram indiferentes. Eu, entretanto, defendo a capacidade de se espantar como um indicativo de saúde – então, talvez por um trocadilho divino encontrei um recente exemplo num questionário médico.

Havia uma ficha a preencher antes do exame. No início, perguntas de praxe: usa marca-passo, já fez cirurgias etc. Mas à medida que as questões se desenrolavam, um nível, digamos, de absurdité aparecia. Utiliza próteses móveis? Tem algum tipo de metal no corpo? Já teve obstruções arteriais? – eu começava a hesitar, de um jeito libriano-filosófico. Usa agulhas ou outro material de acupuntura? – pensei em sanguessugas, divaguei pela história da medicina, voltei ao questionário. Possui clipes ou válvulas na cabeça? – Mary Shelley surgiu, abraçada ao seu Frankenstein; afastei a imagem da mente: concentração! Fez tatuagem ou maquiagem definitiva? Usa cílios postiços?

Cheguei ao limite.

Descontrolei-me numa risada, que durou bem mais do que a polidez recomenda.

A partir daí, rumei definitivamente para outras possibilidades, desvairadas ou plausíveis, a depender de quem aplicasse o questionário. Infinitas fontes de pesquisa sociológica estão contidas nestas fichas médicas. Fetiches detetivescos pulsam nas gavetas, nas pastas arquivadas dos consultórios, repletas de confissões sobre os mais diversos temas. Conversei com meu amigo Urik Paiva, trocamos áudios cheios de hipóteses. Colocamos nossas próprias questões, de interesse urgente para o autoconhecimento ou a catalogação da humanidade.

Pratica danças folclóricas? Já teve contato com materiais radioativos ou com o kit gay? Põe açúcar no café ou prefere sem? Comeu frango ao curry ou observou Moça com brinco de pérola do Vermeer nas últimas duas horas? Tem superstições? Enxaquecas? Visitou o Geestenmuseum da Holanda na última década? Já cantou O sole mio no banho? E fora do banho? Utiliza xícaras ou outros itens de louça para fins sexuais? É poliglota? Possui polidactilia? Usa roupas de poliéster? Já sentiu câimbras no cabelo? Espasmos nas unhas?

A lista continua, e gosto de pensar que daria orgulho a Campos de Carvalho, pelo diálogo com certas páginas do seu O púcaro búlgaro. E por falar nesse livro, se a Bulgária existe, o Brasil também (não precisamos de expedições para provar) – o que me leva à última pergunta, agora realista.

Você, que hoje foi votar, fez isso com sinceridade ou só porque era o jeito?

Tércia Montenegro (texto publicado no Vida & Arte do jornal O Povo)

Hand with pen over application form

Paris, 2015

Exatamente cinco anos atrás, em 13 de novembro, os atentados terroristas em Paris comoviam o mundo. Eu estava na capital francesa uma semana antes; soube da notícia quando já havia retornado a Liège, cidade belga onde então residia. Fazia minhas primeiras anotações para o livro que viria a se tornar o romance Em plena luz, e naquele instante soube que minha protagonista ficaria muitíssimo perturbada – tanto quanto eu mesma estava – com todas as circunstâncias da chacina.

Três equipes de homens realizaram ataques quase ao mesmo tempo, usando dispositivos explosivos idênticos e fuzis do tipo Kalachnikov, em dois casos. Perto do estádio de França, em Saint Denis, às 21h20, o primeiro grupo acionou coletes-bomba. Minutos depois, outro grupo de terroristas abriu fogo contra clientes de bares e restaurantes do 10° e 11° arrondissements. Em seguida, um dos criminosos explodiu seu colete num café no Boulevard Voltaire. Às 21h40, o terceiro grupo chegou a uma sala de espetáculos do 11º arrondissement, atirou nas pessoas do lado de fora do prédio, e depois, já dentro dele, fuzilou dezenas. O resultado foi um massacre com mais de 130 mortos e 350 feridos numa só noite.

No dia seguinte, o Estado Islâmico assumiu a autoria dos ataques, realizados a partir de uma complexa organização mantida na Bélgica. 

Em plena luz se transformou num livro sobre fugas. A personagem principal, Lu, incialmente foge de um relacionamento abusivo para a França – e lá encontra outros tipos de violência, numa escala muito maior. Essa mulher, uma fotógrafa que se faz escultora antes de voltar a exercer o seu ofício, é levada a pensar sobre o corpo: o seu próprio corpo, que escapa para outras paisagens, foge do sofrimento e dos convívios desastrosos, e o corpo dos outros – refugiados, imigrantes que levam apenas o que a experiência de si carrega, pois abandonaram todo o resto. É contra eles que o matemático Étienne se revolta: este personagem detestável também foge. Os seus preconceitos são modos de se desviar do alheio, esquivar-se à diversidade do mundo.

Lu pensa no corpo dos terroristas, o corpo estilhaçado dos fanáticos e das vítimas. Após os atentados de novembro, constata como é violento tudo o que atinge o indivíduo, seja aos poucos ou subitamente, no ataque físico ou psíquico. Nesse sentido, a sociedade é uma potência de agressividades, com seus códigos de repressão moral, religiosa, comportamental… Lu inclusive se agride, mutila o próprio nome, que não admite por inteiro. Quando volta a Fortaleza, cidade de suas origens, ainda suporta a violência de um emprego que detesta – mas, ao fim de um percurso em que conheceu várias pessoas e suas singularidades, vê-se pronta para experimentar uma libertação.

Libertar-se, hoje, parece bem mais desafiador. Em cinco anos a agressividade humana expandiu muitíssimo – apesar de todos os alertas, o luto, o desastre, as pessoas não se convencem a agir de modo menos predatório. A pandemia em 2020 foi um marco desse desequilíbrio de forças, e não só por sua origem, associada a explorações inconsequentes da natureza. A violência do individualismo, que se manifesta em atos mínimos (como a recusa de usar uma máscara), mostra que a proporção dos efeitos será sempre descomunal.

Uma tragédia pode acontecer não apenas através de ataques ou atentados, mas por meio da complacência. Os tipos de sofrimento se multiplicam nesta fase da história da humanidade – que talvez venha a ser conhecida como a mais paradoxal de todas, pela mistura de alta tecnologia e barbárie. E, enquanto continuarmos no esforço diário de salvação, seguem válidas as palavras de Lu, refletindo sobre o sentimento de ter escapado:

“Somos todos sobreviventes de alguma coisa, eu disse a Igor e Alícia, logo que voltei da viagem. Mas recebem esse título os que estiveram por um triz – ou souberam disso, deram-se conta de estar inteiros; perceberam com espanto a própria respiração enquanto ao seu lado trouxas compridas se largavam na poeira, e eram pessoas aqueles rolos de pano nas posturas esdrúxulas, caídos como se um caminhão houvesse perdido pelo caminho a carga que ia na caçamba. Os que podem acordar nesse tipo de cenário formulam a palavra milagre, é a primeira que pronunciam, muito antes de horror, desgraça. É a palavra egoísta de quem se salvou.” (Em plena luz. Companhia das Letras, 2019)

Tércia Montenegro

Oblomovismo e machismo

            O período pandêmico que atravessamos em 2020 trouxe, como uma de suas consequências mais devastadoras, o aumento de crimes contra as mulheres. A brutalidade chegou ao ápice durante o confinamento: em espaços domésticos, ao mesmo tempo em que se protegiam de um vírus, inúmeras pessoas sofreram o convívio forçado com seus agressores. Milhares de histórias de horror familiar aconteceram silenciosamente; algumas até chegaram a ser publicizadas, por atingir um grau extremo (envolvendo morte ou estupro), mas o número de vítimas de abuso ultrapassa vertiginosamente esses casos – até porque são muitas as variantes da violência, dentro de uma tradição machista que tem por hábito menosprezar, repreender e fiscalizar tudo o que concerne ao feminino.

A literatura, claro, não existe imune a essa tradição. Facilmente encontramos passagens (tantas vezes em obras clássicas!) que apostam numa primazia do prestígio masculino, em detrimento do papel da mulher, que circula como figurante ou serviçal. Ora, durante a quarentena, eu – que tenho o privilégio de viver liberta de opressores ou de homens do tipo encosto – encontrei chance de reflexão sobre esse segundo tipo, uma categoria sutil de abusador. A oportunidade surgiu dentro de um projeto de leitura.

Tenho um plano de felicidade clandestina que envolve clássicos russos, lidos ou relidos numa ordem mais ou menos cronológica, permeados por estudos sobre a história do país e o passeio por outras artes: pintura, balé, música etc. Claro que se trata de um aprendizado inesgotável – mas essa não é uma razão para abandoná-lo. Assim, tendo relido um pouco de Pushkin e Gógol, na sequência eu deveria mergulhar na obra-prima de Gontchárov, o romance Oblómov, que já conhecia por diversas resenhas. Mas nenhum comentário crítico me advertiu para o machismo que iria encontrar neste livro.

Antes que me debruce sobre a obra, entretanto, devo advertir que minha abordagem aqui será restrita a este fio temático. O romance tem muitas qualidades literárias nas construções de cena – sobretudo nos diálogos, que esgrimem um timing cômico primoroso –, mas pretendo apontar apenas seus temperos machistas, tarefa válida por há séculos nos alimentarmos desses pratos culturais, sem perceber como são cozidos. Com isso, obviamente não estou acusando o autor, Gontchárov: ao contrário, o que ele expõe em seu livro pode ser tomado como ironia, crítica – trampolim de reflexão, justamente.

Parece provável que um texto ambientado numa Rússia ainda feudal lance um olhar preconceituoso sobre as mulheres – dirá certa voz genérica – por uma questão de verossimilhança, traço histórico. Mas o livro de Gontchárov complexifica bastante a situação: não somente reforça (ou constrói, dependendo da perspectiva) estereótipos que associam a figura feminina a uma entidade sempre altruísta. A tal respeito, a personagem Olga, musa do protagonista, pretende salvá-lo de sua fleuma, de sua preguiça fatal – e confunde essa dedicação com amor. Vejamos alguns trechos:

“E Olga fará tudo isso, ela, tão tímida e silenciosa, a quem até então ninguém dava ouvidos, ela, que mal havia começado a viver! Ela será a culpada de tamanha transformação!

E já havia começado: no instante em que ela começara a cantar, Oblómov já não era o mesmo…

Ele irá viver, agir, bendizer a vida e Olga. Devolver um homem à vida – que glória para um médico quando ele salva um paciente já sem esperança! E salvar a mente de alguém, uma alma aniquilada?…”

Porém, o livro não se detém nessa perspectiva, eu dizia. Sutilmente injeta um perfil de superioridade intelectual em Olga, quando expõe sua eterna curiosidade pelos mais diversos assuntos e sua compulsão pela leitura. É um quadro bem diferente do que vemos traçado sobre Agáfia Matviéievna, a proprietária da casa onde Oblómov vai residir, referida sempre como “burra” e absolutamente voltada para a esfera doméstica, tão disposta ao sacrifício que os problemas financeiros apenas lhe pesam porque podem afetar a dieta de seu patrão. Será esta figura de mulher, incessante trabalhadora em prol do bem-estar masculino, que oportunamente o protagonista vai escolher para esposar. A mensagem subliminar se impõe: mulheres que não se dedicam a um homem são preteridas.

Há vários episódios de machismo no livro, em relações diversas (de Olga com Stolz e do empregado Zakhar com a esposa, que aceita suas humilhações e grosserias como se fossem brincadeira), e todas essas passagens podem valer pela crítica ou denúncia. Entretanto, o aspecto mais veemente do livro – por ser o que caracteriza o personagem-título – passa por essa composição de Oblómov: um sujeito criado para as regalias, incapaz de qualquer atitude, um covarde que não toma as rédeas da própria vida. Vamos reler outra passagem:

“Olga via até que, apesar de sua própria juventude, a ela cabia o papel principal naquela relação afetiva, que dele só se podia esperar uma impressão profunda, uma passividade fervorosamente preguiçosa, uma eterna harmonia com cada batida do pulso de Olga, mas nenhum movimento da vontade, nenhum pensamento ativo.”

Nesse ponto, a voz anônima poderia retornar para dizer que a letargia não é propriedade exclusivamente masculina. Concordo; em termos científicos, nada no cromossomo Y deve estar associado a uma postura blasée ou inerte. Mas, na prática, quantas toneladas de homens não vagam por aí, representando essa atitude que passa incólume porque não é violenta nem ostensiva? Tal machismo parte da ideia de que as mulheres devem ser as mais esforçadas: elas movimentam o mundo, põe o dia para funcionar, fazem coisas, providenciam resultados. E os homens ficam ali, sendo servidos com um ar de tédio ou doença; lastimam-se, estão indispostos ou deprimidos. Repetem frases que começam por “Ah, se eu pudesse…!” ou “Se eu fosse…!”

Sinceramente, faltam-me dedos para contar o número de sujeitos que conheci assim, seja por convívio direto ou mera observação. E, se durante grande parte da vida não consegui nomear esse desconforto que sentia, perto de um homem fraco qualquer, um medíocre à procura de uma escrava, mecenas ou enfermeira que cuidasse dele, hoje tenho bem evidente a definição. É oblomovismo. Um caso específico de machismo, um aspecto que inclusive dialoga com o conceito de imagens de controle desenvolvido por Patricia Hill Collins, para tratar das matrizes de dominação subjacentes à violência, simbólica ou não.

Acrescentemos esse perfil à lista que esmaga as mulheres, observemos como na pandemia as exigências se multiplicaram principalmente para elas. Foram elas, sobretudo, que tiveram de se desdobrar com crianças, idosos, trabalho dentro e fora do espaço doméstico, elas que estiveram muito mais à beira de suicídios ou depressões, sempre solicitadas, responsáveis por isso ou aquilo, com quase nenhum tempo para si. Olhemos para essa realidade oblomóvica e teremos uma ideia da desigualdade que precisa ainda, urgentíssima, ser ultrapassada.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal curitibano, com ilustração de Thiago Lucas)

Ouvir ler

Roger Chartier, num capítulo do terceiro volume da História da vida privada, comenta como a leitura silenciosa é uma das práticas constitutivas da esfera particular. Entretanto, o seu advento não anulou o uso social que nos impulsiona a ler em voz alta: “(…) ler em grupos, ler por obrigação de trabalho ou por prazer são atos que não desaparecem com a revolução da leitura no silêncio e na intimidade”, afirma. Parece bem acertado. Mesmo hoje, com uma pressão tecnológica que nos conduz a uma solidão quase patológica, persistem clubes de leitura, podemos recordar.

Mas talvez a maior parte das pessoas associe o ritual de ouvir ler (e também ler para os demais, por seu turno), ao período da infância. Meu pai, enquanto estudou num seminário, criança ainda, tinha de ler o martirológio em voz alta antes das refeições. Ele nunca esqueceu o milagre absurdo de São Dinis (aquela história de que, após decapitado, o santo pegou a própria cabeça e beijou-a), porque, à medida em que lia para o clero e os colegas, todos muito solenes, meu pai começou a rir, até que se descontrolou de tal maneira que ninguém podia ignorar o escândalo – com consequentes reprimendas, não muito graves, já que essas, ele tinha esquecido.

Na minha própria infância, a leitura antes de dormir era um ritual delicioso – e foi ali, pelas mudanças de voz que minha mãe adotava para marcar cada fala de personagem, que ganhei as primeiras noções sobre teatro. Depois, ao longo da vida, tive outras inúmeras ocasiões de ler: para os alunos, por exemplo (e para sua fruição, não somente como prévia explicativa). Muitos poemas marcaram vínculos de afeto, a partir da sala de aula.

De modo mais recente, o afastamento físico me leva a gravar áudios lendo trechos para amigos, em mensagens do whatsapp. A motivação é passional; sei que a pessoa vai gostar de conhecer tal fragmento, isso diz respeito a algo que conversamos, ou dialoga com uma piada antiga nossa – ou apenas quero que ela escute e me devolva com uma gravação de algo que está lendo… para que fiquemos lado a lado, unidos pela onda sonora.

Com um companheiro, também, sempre desejo o prazer da leitura partilhada… Após o amor e antes do sono, cada qual pega um livro, lê primeiro silenciosamente, os pés se encontrando sob o cobertor. Mas num instante qualquer, toma-se a iniciativa – “Escuta aqui essa passagem” – e os livros se mesclam; às linhas interrompidas colam-se outras, gerando cruzamentos insólitos. Essa é uma das experiências mais valiosas, porque envolve não apenas o texto, mas também o timbre. Eis a voz da pessoa amada transportando a potência literária, transformando-a em uso personalíssimo, pelas pausas, o sabor de sua pronúncia, o fôlego que reinaugura o momento divino, quando a palavra dita criou o mundo.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no caderno Vida & Arte do jornal O Povo)