Um ano sem Benfica

O Benfica foi meu bairro de infância; a primeira casa onde morei ficava numa rua próxima à avenida da Universidade. Não importa que minhas lembranças desse período sejam sutilezas fantasmagóricas. A atmosfera do lugar se entranhou na memória, enriquecida por novas experiências conforme eu crescia e — já morando em outra área — voltava ao circuito de ensino, cultura e artes que se respirava por ali.

Lembro que aos 12 anos, no Teatro Universitário, assisti ao ator e dramaturgo Ricardo Guilherme estrear um monólogo na estética do seu Teatro Radical. Também visitei algumas vezes o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, onde minha mãe estudou canto e piano. Ia ao Museu da Universidade, pesquisava na biblioteca da UFC e gostava de esperar meu pai na saída de suas aulas, no curso de Letras. Aquela mesma efervescência estudantil seria parte da minha rotina, desde que passei no vestibular e o Benfica tornou-se realmente uma espécie de casa. A Reitoria excitava minha imaginação, com a história aristocrática por trás dos seus prédios de amplos salões, escadarias – e também com os seus jardins, vez e outra ocupados por eventos artísticos ou manifestações de greve, além da Concha Acústica, com tantos shows e formaturas.

Fui a missas na igreja dos Remédios, participei de programas na Rádio Universitária, conheci residências estudantis e suas lendas fantásticas. Também estive em quitinetes de amigos que me arrastavam para livrarias e bares decadentes. Frequentei inúmeras fotocopiadoras, sorveterias e restaurantes, vi performances e exposições fotográficas em plena rua. Presenciei passeatas, assaltos, estive em filmes na Casa Amarela Eusélio de Oliveira, ouvi centenas de palestras. E andei muito a pé por todo o Benfica, espiando o interior doméstico em ruas transversais à Faculdade de Administração e Estatística. Mapeei sedes de partidos políticos, sindicatos, grupos circenses, lojas, escolas. Durante todo o período de graduação, mestrado e doutorado, eu respirei o bulício desse que é um dos bairros mais criativos de Fortaleza. Depois, como professora efetiva do Centro de Humanidades, eu o incorporei com naturalidade à rotina: “Agora vai ser para sempre”, pensei.

Não imaginava (como ninguém, aliás) que uma pandemia chegaria, impondo um exílio sui generis. O home office, a aula remota, o convívio virtual… faz um ano que o magistério, por força das circunstâncias, virou esse diálogo entrecortado por oscilações de internet, transmitido por câmeras e microfones que hesitam, interferências domésticas e outros episódios insólitos. A sala de aula se transformou nesse rizoma espalhado por muitos bairros – mas sempre que surge o prazer nas trocas de aprendizado, e quando detecto em estudantes o bom humor, a motivação que resiste apesar de tudo, reencontro o Benfica. Então penso que o espírito do lugar somente passeia por nós, disperso, mas em breve voltará ao seu núcleo primordial.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

OSSOS E ABRICÓS

O caderno vermelho, de Paul Auster, é um livro que sempre me faz recuperar a disposição mágica, quando ela está escassa. Trata de episódios de “coincidência” ou sincronicidade, encontros milagrosos, guinadas do destino experimentadas pelo próprio autor ou por amigos dele – situações tão inverossímeis que, se estivessem num filme, e não na vida, serviriam para rotulá-lo de fantasioso em demasia. As tais conexões parecem favorecidas pela “intensidade dos pensamentos” que manda “um sinal pelo mundo afora”, algo que se popularizou como “lei da atração”.

Ora, eu me encontrava numa época de mesmice pós-quarentena naquele fatídico 2020 (que na verdade ainda não acabou) e resolvi apelar para as confluências energéticas – ao menos para me divertir um pouquinho, catalogando uma cadeia de aventuras ou acasos, que poderia ou não trazer uma mensagem implícita. Eis o que aconteceu.

Eu voltava de uma viagem que, dentre outras finalidades, servira para que me submetesse a um tipo de exame dendrológico, após vários meses estudando informalmente árvores. Pois desse trajeto sertanejo, devo confessar que quase trouxe um crânio de boi para dar sorte. Cheguei à iminência de carregar a mandíbula branquíssima, afiada ao modo da arma com que Sansão massacrou os filisteus – mas desisti, com medo de profanar despojos. Logo no dia seguinte ao retorno, eu me pus a ler Mulheres que correm com lobos – e aí encontro a história da velha-loba, que canta sobre ossos, para encantá-los. Vale a pena trazer aqui a passagem:

“Ela se arrasta sorrateira e esquadrinha as montanhas e os arroios, leitos secos de rios, à procura de ossos de lobos e, quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no lugar e a bela escultura branca da criatura está disposta à sua frente, ela senta junto ao fogo e pensa na canção que irá cantar.

Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e começa a cantar. É aí que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne, e que a criatura começa a se cobrir de pelos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado.

La Loba canta mais, e a criatura-lobo começa a respirar.

E La Loba ainda canta, com tanta intensidade que o chão do deserto estremece, e enquanto canta, o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro.”

Pouco depois, num parque onde me encontrei com uma amiga, sentadas sob um abricó falamos sobre esse título da Clarissa Pinkola Estés, dentre outras referências de histórias com personagens e autoras mulheres. Pensei então na Herta Müller, nos dois livros dela que me aguardavam, ainda intocados. Quando cheguei em casa, peguei o primeiro que vi – O rei se inclina e mata – e comecei a lê-lo como se estivesse esfomeada. A presença de um abricó, na paisagem das primeiras páginas, fez com que eu parasse, suspensa num tipo de elo transcendental.

No trecho, Müller menciona a árvore que “não se envergonhava de florescer” no pátio de sua casa, e que passou a estar associada com a ausência de seu pai, tanto quanto as ferramentas que em vida ele usava: “Com os olhos eu adentrava as árvores de modo tão irracional que os galhos ainda curtos e pelados se pareciam incrivelmente com as pequenas chaves de fenda”.

Mais adiante, a escritora lembra como em Berlim encontrou um pé de abricó, sem o procurar e mesmo contra as probabilidades climáticas: “Para mim a árvore é um pedaço de vilarejo que escapou; é muito mais velha do que minha estada na Alemanha”. Aquela presença orienta sua rotina: “Através do lado da rua que escolho, tenho de decidir se visito a árvore ou se prefiro desviar-me dela. Decidir isso não é uma grande sensação. Digo a mim mesma: vejamos como ela está hoje. Ou: que ela me deixe em paz hoje. Não é o pai que me empurra para as visitas, não o vilarejo, não o país – nada de saudades. A árvore não é peso nem alívio. Ela só está ali como um travo daquele tempo. O que me range na cabeça em sua proximidade é meio açúcar, meio areia. A palavra ‘Aprikosen’ [abricó] é lisonjeira, ela soa a ‘liebkosen’ [fazer carinho].”

Eu sei que esses laços temáticos estão o tempo todo acontecendo – mas na maioria das vezes os ignoramos, considerando que aquela recorrência é um dado trivial, ou não significa nada, ou, ao contrário, significa algo enorme, tão poderoso que jamais chegaremos a decifrá-lo; portanto, a ignorância passa a ser nossa condição de calma, manutenção de sanidade.

Eu, entretanto, prefiro a curiosidade: a observação e desvendamento, ainda que as conclusões escapem. E me fascina acompanhar esse roteiro de um Grande Narrador que vai soltando pistas, como se fossem sementes ou vestígios que sequer sabemos que existem. Contenho a vontade de encontrar uma resposta específica, um tesouro no fim do mapa dessas aventuras. O próprio mapa é o tesouro, como diz minha amiga Fernanda Meireles. Para ajudar a fruir melhor desse trajeto num escuro com relâmpagos, lembro outro trecho da Herta Müller, quando ela comenta que só o ocidente desenvolve a “crença de que não se pode suportar o que não tem sentido”.

A propósito, o surrealismo talvez tenha sido a única reação saudável da nossa cultura diante do absurdo dos fatos – e, usando o espelhamento de temas, soube explorar o humor que há nesses emaranhados. Afinal, o non sense restaura uma espécie de conforto mental pela via da comicidade. Rir do que não compreendemos, observar os sinais sutis do universo, seguir a intuição de modo implacável… esses são procedimentos que aperfeiçoo para viver, sabendo que o mais importante é a margem para o improviso.

Cada momento intrigante permanece pulsando, como “um modo de lembrar a mim mesmo que não sei nada, que o mundo onde vivo continuará me escapando eternamente”, diz Paul Auster – e ressalta que, no meio dessa rede de aventuras, há muitas outras conexões que passam despercebidas. São intervalos insignificantes, em que inclusive escapamos do fim sem ao menos reparar nisso: o segundo exato em que descemos de um ônibus prestes a colidir, o passo que nos livrou do vaso caído da janela de um prédio, o voo desmarcado inexplicavelmente, a festa cancelada, a amizade rompida… Quem sabe a série de eventos graves que daí sucederia, em hipóteses variadas?

Há um potencial de ficção que permanece ardente, em toda e qualquer rotina. Basta ficarmos atentos, para encontrar o fio que desvenda todo um tecido, com sua trama.

Em tempo: no livro citado, Auster também conta curiosos fatos que envolvem sua esposa, Siri Hustvedt, que vim a conhecer como escritora seguindo o impulso de comprar um de seus títulos após um manuseio rápido na livraria. Eu nunca ouvira falar dela antes, mas A mulher trêmula acabou se tornando uma valiosa referência: tratei desta obra no texto “O outro que me habita”, publicado aqui no Rascunho, em abril de 2019, e já utilizei bastante este livro em sala de aula.

É agora em Siri Hustvedt que encontro – aparentemente ao acaso – mais um trecho que vem enlaçado com minha viagem, com o crânio e as árvores tão próximos. N’O verão sem homens, a protagonista escreve um poema durante uma crise emocional, e ele termina bem assim: “Escolho uma figura do meio do nada,/de um furo na mente/e olho, ali na prateleira:/um osso florido”.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de março de 2021)

Patriarcal

             Eis um livro valioso: A criação do patriarcado, da historiadora Gerda Lerner. Publicado no Brasil em edição da Cultrix, com prefácio de Lola Aronovich, essa história da opressão das mulheres pelos homens é obra de profunda lucidez científica. Longe de cair num vitimismo passional, a pesquisa mostra como a subordinação das mulheres foi resultado de um processo que, ao longo de 2.500 anos aproximadamente, envolveu relações econômicas e governamentais, além de mudanças de cosmogonias que fizeram com que imperassem divindades masculinas.

           Aprendi muitíssimo com a leitura, e ressalto aqui apenas um aspecto: a falta de evidências antropológicas que atestem um matriarcado pré-histórico. A autora explica: “Penso que só podemos falar em matriarcado quando as mulheres têm poder sobre os homens, não ao lado deles; quando esse poder inclui o domínio público e as relações exteriores, e quando as mulheres tomam decisões essenciais não apenas para seus parentes, mas para a comunidade. (…) esse poder deveria incluir a definição de valores e sistemas explicativos da sociedade, bem como a definição e controle do comportamento sexual masculino. Pode-se observar que defino matriarcado como a imagem refletida do patriarcado. Segundo essa definição, eu concluiria que nunca existiu uma sociedade matriarcal.” (p.59)

            Todos os indícios de épocas que celebraram a fecundidade e a força da mulher, todas as 30 mil esculturas da Deusa-mãe não são o bastante para uma certeza histórica desse teor. Ou seja: não houve qualquer período em que as mulheres detiveram o poder político, econômico e, sobretudo, o poder de posse sobre o corpo dos homens, regulando sua sexualidade e liberdade. Gerda Lerner observa que a criação de “mitos compensatórios” não facilita a vida das mulheres contemporâneas, e a atitude mais inteligente é “abandonar a busca por um passado empoderador”, para se concentrar no que ela chama de enigma central: “a participação da mulher na construção do sistema que a subjuga” (p.65).

            Parece de fato incompreensível que as próprias mulheres propaguem a ideologia patriarcal. Uma razão, entretanto, pode estar numa alternativa de domínio – porque, se inexistiu um matriarcado no mundo, isso não indica ausência de agressividade por parte das mulheres. Nós, tanto quanto os homens, somos capazes de oprimir – a diferença é que jamais fomos estimuladas a isso, nem premiadas por um juízo que costume ignorar nossas maldades. Desse modo, criaturas com ganas de controlar, cercear e punir quase sempre cultivam sua sordidez na esteira do machismo, tendo como alvo outras mulheres. Textualmente, inclusive, a identificação é imediata; utilizam o mesmo léxico opressor de um homem, revelando um exercício de poder por imitação. São vítimas brincando de carrasco, sentindo um prazer postiço. São pobres alienadas que direcionam seu sofrimento para o lado errado. Só quem ganha, no final, é o patriarcado.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)