As perdas familiares

Um livro de Patti Smith – Linha M (Companhia das Letras, 2016) – me acompanhou neste janeiro, tendo inclusive viajado comigo, para que eu pudesse lê-lo num quarto azul com cortina xadrez, durante os intervalos do amor. E já quase no finzinho, uma passagem (que à primeira vista pode não ser tão poética ou relevante quanto outras) mereceu um grifo, e agora ganha este meu texto. Retomando o assunto da morte do seu marido, que perpassa todo o volume, a autora diz:

“Desejamos coisas que não podemos ter. Tentamos conservar certos momentos, sons, sensações. (…) Quero ver meus filhos ainda crianças. Mãozinhas pequenas, pés ligeiros. Tudo muda. Garoto crescido, pai morto, filha mais alta que eu, chorando por causa de um sonho ruim. Por favor, fiquem aqui para sempre, digo para as coisas. Não vão embora. Não cresçam.” (p.170)

Como os pais lidam com o luto da infância de seus filhos? Nunca li nada a respeito, nem conversei diretamente sobre o tema com ninguém. Na verdade, eu sequer havia formulado a questão dessa maneira, antes do livro de Patti Smith. Patti tem quase a idade da minha mãe, e exatamente por isso estabeleci um elo entre o seu texto e várias situações que vivi em família. Num domingo recente, por exemplo, enquanto eu contava uma história engraçada, minha mãe me interrompeu para dizer: “Ah, agora você deu o sorriso que tinha quando criança!”

E houve inúmeros episódios de nostalgia antes desse.

Existe aí um real sentimento de perda, que eu costumava considerar exagero. Um lamento pelo rosto perdido, pela aparência anterior de um(a) filho(a), o cheiro que ele(a) tinha, a sua pouca estatura, as roupinhas, o timbre de voz desaparecido… se isso não for luto, não sei que conceito terá.

A ideia de um exagero – e a consequente indignação que me invadia – impediu que eu muitas vezes escutasse o saudosismo de minha mãe. Queria passar para outro assunto, rápido. Não estimulava aquelas memórias, que no fundo me acenavam com um desejo de regressão, como se as palavras maternas negassem, ou desvalorizassem, as minhas conquistas, o progresso para me tornar adulta (condição que, por si, já considerava vantajosa). Em última instância, eu temia que a sua saudade indicasse um anseio de posse ou proteção.

Mas – Patti esclareceu – esse luto pela infância é somente desamparo. Impotência diante de algo invencível: o tempo.

Não sei se alguém sente falta da própria infância com a mesma força que um pai ou mãe pode sentir, em relação ao passado de seus filhos. Eu não sinto. E suponho que ninguém é um perfeito espectador de si, sobretudo numa época em que a consciência está se formando, e a imaginação se confunde facilmente com o real. Eu apenas tenho ocasionais retornos a alguma sensação física antiga: a experiência de ver meu corpo muito próximo do chão, ou a maravilha que era ser tomada nos braços, alegremente indefesa e leve. Mas saudade ou tristeza em relação a esse tempo, não tenho.

Como sempre criei gatos, e não filhos humanos, penso que essa transição de aparências aconteceu de modo mais sutil, comigo em relação a eles. Mas é verdade que até hoje tento flagrar um gesto brincalhão de filhote, na minha gata de 15 anos, e quando ele aparece… devo ficar igual à minha mãe descobrindo em mim um sorriso de criança.

Estamos a cada minuto perdendo uns aos outros – e a nós mesmos –, eis a realidade inescapável. Mas por que no primeiro caso parece mais doloroso, não sei. Talvez a resposta passe pela questão da autoconsciência e suas falhas etc. Nessa perspectiva, os aniversários devem ser rituais de despedida, marcos específicos dentro de uma cotidiana perda que, ainda que seja bem previsível e familiar, dói. Dói tanto às vezes, que lateja.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Linha M

“Acredito no momento. Acredito nesse balão alegre, o mundo. Acredito na meia-noite e na hora do meio-dia. Mas no que mais acredito? Às vezes em tudo. Às vezes em nada. É algo que flutua como a luz refletindo numa lagoa. Acredito na vida que um dia todos vamos perder.” (Patti Smith, Linha M. São Paulo: Companhia das Letras, 2016)

Grata, Patti Smith, por sua presença que esteve ao meu lado neste janeiro.

A beleza ancestral

Depois de ontem – graças aos Percursos Urbanos, projeto do Júlio Lira que é uma das iniciativas mais lindas que movimentam a cidade – pude firmar reflexões que já vinha ensaiando dentro de mim, mas até então se amontoavam, confusas. O passeio, com o tema “Jardins de calçada”, foi conduzido pela arquiteta Karina Diógenes e teve o registro fotográfico feito por Ivonisio Mosca.

Levados por esse mote, conhecemos sete mulheres de três bairros (Rodolfo Teófilo, Benfica e Fátima). Essas senhoras, moradoras antigas e figuras de grande força, embora cada qual com seu estilo próprio, criaram redutos de beleza e utilidade medicinal em praças e canteiros, responsabilizando-se pelo cuidado de muitas plantas, que crescem nos espaços públicos, mas sob um afeto essencialmente privado. Quando encontrei D. Geralda, de 97 anos, voz baixinha e energia tão poderosa, creio que entendi tudo. Eu estava diante de uma beleza ancestral, a mesma que reverencio em árvores seculares. E a partir daí, passei a pensar no sagrado que é a velhice.

Não por acaso, eu me incomodo ao ver episódios de “Gracie & Frankie” – apesar da diversão, do humor caricato, feito obviamente para descontrair, as personagens parecem reforçar os valores de uma sociedade que festeja a juventude. Há momentos interessantes de empatia para com os idosos, ao longo desta série: esse colocar-se no lugar de alguém que já não tem tanta força física, ou destreza mental, surge como um argumento implícito – mas, dentro do circuito de glamour e extrema riqueza (todo mundo rasga dinheiro e vive em mansões, ali), “Gracie & Frankie” passa uma mensagem enfática de preocupação com a aparência, a beleza associada a um frescor juvenil.

Se os filhotes (de qualquer espécie) são sempre criaturas que nos arrancam um sorriso, quero acreditar que o motivo não está somente em sua estética. Celebramos, nessas feições tenras, a esperança, a ideia de continuidade que a nova geração parece garantir. Em contrapartida, o velho lembra o que tanto queremos evitar: a morte, o fim, a decadência. Numa esfera social extremamente utilitária – eu não ia usar o termo capitalista, mas é esse mesmo, não dá para evitar –, alguém que deixa de ser claramente produtivo, deixa de colaborar de modo imediato para manter girando a roda do sistema… o que acontece com alguém assim? É discriminado pelo governo, pelas pessoas, pela cultura. Com lapsos de exceção, é claro – mas no geral é tão “normal” aceitarmos que os idosos fiquem em casa, confinados, que sequer nos questionamos sobre como a cidade, os meios de transporte, os espaços urbanos etc, não facilitam a sua presença nas ruas. O objetivo silencioso é esconder essa gente, sufocar sua presença, antecipar simbolicamente a sua morte.

Mas o quanto teríamos a ganhar, todos nós, ao reconhecer essa beleza ancestral! E estou pensando não somente na carga histórica, nas lições de experiência ao escutar uma pessoa nonagenária. Penso na aparência de fato: a beleza de um rosto desenhado pelo tempo, a alegria de sentir, no pulso ou no peito, a energia de um coração que trabalha tão longevo – com um ritmo sábio que é o mesmo do vento, do riacho, dos bichos miúdos camuflados na areia.

Eu encontrei D. Geralda e me conectei com a natureza inteira através do olhar dela.

 

Tércia Montenegro – 19/01/2020

 

 

 

 

O sertão e as mulheres

Memorial de Maria Moura é o último romance de Rachel de Queiroz, um livro que veio para selar o estilo desta autora cearense nascida a 17 de novembro de 1910. Sua obra, perpassada pelo regionalismo moderno – quando Rachel foi uma das pioneiras, ao lado de autores como José Lins do Rego e Graciliano Ramos – já nasceu com traços bem definidos. Desde a estreia, com O Quinze, era evidente a força de sua escrita realista e objetiva. O cenário do Nordeste virava palco de histórias dramáticas, mas ao mesmo tempo surgia como espaço simbólico, fronteira de costumes e códigos morais. Nesse território, o papel feminino merecia destaque.

Em quase toda a literatura brasileira anterior, que contava com raríssimos exemplos de mulheres escritoras, o discurso sobre a feminilidade vinha de uma experiência distante, da observação feita a partir de um olhar masculino. Assim, por exemplo, foram os poemas árcades, com suas musas bucólicas, ou os textos românticos, que em prosa e verso celebravam a delicadeza de figuras virginais. Na perspectiva de autores mais argutos, a mulher podia sugerir perfis ambíguos ou até mesmo um comportamento devasso – e houve, claro, personagens profundas e inesquecíveis nas criações do Real-Naturalismo. Entretanto, por seu caráter de exceção, a maioria desses casos não se firmava com espontaneidade a ponto de soarem convincentes: as mulheres dos livros podiam parecer exóticas ou “casos únicos”, sem correspondente na vida trivial de um ser humano.

Rachel de Queiroz tratou o tema do feminino de outro modo – e sua própria imagem de mulher na área das letras solidificou-se com naturalidade. Era um reflexo da fluidez que a autora aplicava a seus projetos literários, abrindo caminhos com vigor inquestionável, mas sem alardear sacrifícios ou grandes dificuldades; ao final, parecia tão óbvio que aquela trilha estivesse aberta, que se podia esquecer que há pouco tempo ela não estava lá. Basta lembrar que Rachel foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, rompendo preconceitos que até 1977 – ano de sua posse – ainda eram impositivos.

Assim também ocorre com as personagens de Rachel: se alguma se sobressai, por seu protagonismo, nem por isso o seu caráter é inverossímil ou as suas ações, improváveis. Tudo envolve o leitor com a máxima espontaneidade. Maria Moura, por exemplo, pode ser considerada uma figura revolucionária e emblemática; no entanto, por mais que ela cause espanto pelas vestimentas masculinas e ousadia guerreira, não é um exemplo isolado de coragem feminina. Tal característica se reflete em diversas personagens, como em Marialva, a prima que foge para casar com o saltimbanco, ou em Firma, a esposa peçonhenta de Tonho. Até nos casos malsucedidos, que têm como desfecho uma desgraça, exalta-se a liberdade feminina enquanto ela dura – e podemos lembrar a mulher adúltera que seduz o padre, ou mesmo a própria mãe de Maria Moura, que desafiou a sociedade da época ao “amigar-se” com um homem mais jovem.

Memorial traz ainda o sabor dos relatos históricos, com cenas que parecem pertencer a uma esfera mítica e, talvez, eterna. Assim observamos a simbologia do lar, desde a casa da infância, que Maria Moura incendeia, até o casarão que anos depois faz construir, na Serra dos Padres: o espaço de habitação se reveste de um poder pessoal, de uma independência que a personagem aos poucos conquista. Hoje, numa sociedade cada vez mais globalizada, talvez não haja mais tanta importância dada ao “chão” dos antepassados, mas ainda persiste a ideia de autonomia e status associada a uma casa própria. De igual forma, a figura do tocador de rabeca, Valentim, provavelmente não é mais comum nas grandes cidades, embora persista pelo sertão. Mesmo assim, parece eterno o ímpeto aventureiro representado por este músico circense – como é eterna a sensibilidade que ele desperta, ao encontrar Marialva, o “par de olhos verdes” com quem se casará.

Há trechos, porém, que claramente apontam a época em que a história ocorre, em meados do século XIX. É o caso do episódio em que Maria Moura vê pela primeira vez uma cédula de dinheiro e considera que aquilo era um papel sem graça, que não impressionava nem pesava na mão, como as moedas. A curiosa ideia de que as cédulas não iriam “pegar” como moda, nas transações financeiras, leva a uma reflexão sobre o nosso tempo atual, numa perspectiva do passado, mas também na permanente transição para um tempo futuro. Pois se para Maria Moura era improvável que um dia o dinheiro de papel “vingasse”, para nós até mesmo este já se torna raro, substituído pelas transações feitas com cartão de crédito e transferências on line. Perde-se cada vez mais a sensação do corpo relativa ao peso das moedas, do ouro ou da prata, uma experiência física que não encontra substituto.

Tais mudanças envolvem não somente as vivências corporais, mas também as emotivas – e Memorial de Maria Moura enseja reflexões as mais variadas sobre aspectos de permanência e transição em hábitos, relações sociais ou crenças. Comparativamente, olhamos para nosso próprio século, ao visitarmos o antigamente. Por um lado, conhecemos uma paisagem primitivíssima, impregnada de atmosfera épica, na constante guerra pela sobrevivência. Por outro lado, entretanto, sob as camadas típicas e culturais de um espaço e uma época, vemos os costumes, as emoções permanentes de qualquer ser humano. Nessa dimensão, as mulheres são protagonistas, representantes de um contexto universal.

Os episódios em que Maria Moura sai para os confrontos armados, seus gestos de grandeza bélica ou suas decisões autoritárias, nada mais são que exigências da natureza. Fraquejar seria a desonra, opção que essa mulher – feita com a fibra dos sertanejos – rejeita. É a própria Maria Moura quem declara que não nasceu para coisa pequena, que descobriu ter força e saber controlá-la: “E quando eu não fiz nada porque não queria, isso também foi bom, sinal de que eu comandava a minha força. Eu só fazia o que queria” (p.220). Esse vigor ressoa em vários componentes do enredo, repetido com maior ou menor intensidade em outras personagens.

É marcante a sensação de que a obra de Rachel de Queiroz nasce verdadeira, como um retrato vivo baseado na pesquisa, na observação, num reflexo da tendência neo-realista do momento. Mas, por mais que a descrição da realidade e dos acontecimentos possa indicar camadas ideológicas e críticas (que obviamente existem), a primeira pretensão de Memorial de Maria Moura é a de envolver o leitor, com um bom relato de aventuras. Rachel de Queiroz seguiu o antigo e sábio preceito do filósofo Horácio, quando dizia que a finalidade da arte deve ser ensinar através do prazer.

Tércia Montenegro (em prefácio para a edição de Memorial de Maria Moura, da Best Bolso, em 2010)

 

 

A disciplina da dor

 

Já faz algum tempo, escrevi um longo ensaio sobre os contos de Lygia Fagundes Telles. Eu o intitulei em ressonância com um livro da autora, A disciplina do amor, composto por fragmentos biográficos, literários e ensaísticos. O ensaio passou por algumas vicissitudes, até que – cedendo ao apelo primordial de todo texto, que é o de ser lido – eu decidisse desmembrá-lo para publicá-lo no jornal Rascunho. Ele não segue necessariamente o roteiro original, mas continua firme na intenção de homenagear Lygia Fagundes Telles, agora ao longo de algumas edições nesta coluna. Usaremos, portanto, como trampolim o livro citado, que em diversas passagens traz uma reflexão sobre o rigor como oposição ao extravasamento emocional. O compromisso social de manter o controle é visto pela escritora como uma espécie de covardia, diante da grande coragem que é expor-se em fragilidades:

“(…) coragem da cólera, da tristeza – ô Deus! – até nos enterros as pessoas tão contidas, tão exemplares. Se controlando para não chorar alto porque se o choro fica forte, já vem alguém com a pílula, a injeção, o analista: fechar as portas, as janelas, os buracos. Até os anjinhos de Giotto se desesperaram diante de Jesus crucificado, lá estão eles no céu, arrancando os cabelos, os olhos inundados de lágrimas. Mas o homem tem que ficar no nível, sem transbordar.” (TELLES, 1998, p.18)

A disciplina de uma dor que se nega ou reprime em nome das aparências é ponto marcante em várias personagens de Lygia. Seguimos este fio condutor para a análise dos contos desta autora, observando que a definição de dor pode englobar inúmeras situações trágicas, relacionadas a perdas, frustrações, remorsos ou loucura.

Para começar numa grade cronológica, partiremos do livro O jardim selvagem, publicado pela primeira vez em 1965. A maioria dos contos desta obra “migrou” para outros volumes de Lygia, coletâneas ou seletas de textos impressos ao longo dos anos. E vários contos de outros livros tiveram trajetória semelhante, após terem se esgotado os títulos em que foram publicados pela primeira vez. Assim, visto que a própria autora promove uma circulação de seus escritos, aos poucos também nos sentiremos à vontade para encaminhar a análise dos contos de maneira menos temporal, aprofundando as associações entre as obras. Por enquanto, porém, comecemos de maneira disciplinada.

O primeiro texto em que constatamos a pertinência de nosso foco de estudo é “Gaby”, com um personagem pintor mergulhado em narrativa fragmentada por retalhos de memórias. O artista vive no constante conflito de deixar-se ou não aprisionar por uma mulher mais velha, que pode suprir suas necessidades financeiras. O que nos interessa nesta história, porém, é sobretudo Mariana, que demonstra um rigor espartano de produtividade, enquanto Gabriel, o pintor infantilizado já desde o apelido Gaby, dado pela mãe, adota uma concepção meio budista para se entregar ao desânimo: “(…) no dia em que os homens descobrirem que melhor do que viver é não viver. Melhor do que pintar, deixar a tela em branco. O papel em branco. A perfeição.” (TELLES, 1974, p.32)

Neste conto, as figuras femininas são fortes e representativas de atitudes que encontramos em outras histórias de Lygia: há a esposa de Gaby, velha e manipuladora; há Mariana, a namorada jovem, enérgica e impositiva – e há a mãe de Gaby, tão doce em seus carinhos, mas dissimulada, traidora do marido.

O entra-e-sai dessa mãe cheia de compromissos é visto como um indício de mau comportamento: “O pai devia saber que mulheres assim agitadas não podem mesmo ser fiéis.” (p.48) Dessa forma, o critério de uma aparência respeitável, junto com uma atitude controlada, era uma espécie de exigência imposta à mulher, se não quisesse ficar “falada”. Em vários textos de Lygia, encontramos a ressonância desse compromisso, principalmente representada por uma personagem mais velha, que se torna opressora ou fiscalizadora da juventude. Em “Gaby”, entretanto, a esposa do protagonista aparece como um reflexo de sua mãe: é sensual e luxuriosa, deixando-o mesmo aborrecido. A jovem disciplinada identifica-se com a figura correta, “de princípios”; entretanto, embora Gaby a admire, está casado com a velha que lhe lembra a mãe.

Em outro conto deste volume, “A ceia”, há também uma mulher com idade para ser mãe de seu companheiro: é justamente esta a impressão que tem o garçom a servi-los, num restaurante quase deserto. O encontro é uma tentativa de “despedida mais digna”. Alice, após 15 anos de convívio com Eduardo, foi abandonada, e agora o antigo parceiro está de casamento marcado com uma jovem, Olívia. Inconformada com a separação, Alice embriagou-se e fez escândalos nas ocasiões em que tentaram conversar. Dessa vez, não será diferente: embora ela tente manter-se calma, logo chora e se humilha, diante de Eduardo. Alice é outra mulher para quem a disciplina das emoções existe como pressão teórica, mas ainda muito distante, no exercício prático.

Bem representativa da separação é a imagem que temos quando o casal se afasta um pouco da mesa do restaurante e vê: “No meio do jardim decadente, uma fonte extinta.” (p.112). Em momento posterior, teremos a oportunidade de analisar como a simbologia da água está associada à vida, ao fluxo da juventude e ao sexo; da mesma forma, jardins, bosques e demais espaços com densa vegetação, na escrita de Lygia, adquirem a conotação de misticismo e, em alguns casos, anúncio de morte. A frase citada, então, é uma dupla ilustração do fim do relacionamento entre Eduardo e Alice.

Separação inconformada ainda é o tema de “Venha ver o pôr do sol”, conto de suspense que alterna os papéis: dessa vez é o homem, Ricardo, quem se vê preterido pela companheira, Raquel. Em determinado momento, sua expressão de apertar os olhos, num indício de tensão vingativa, é exatamente a mesma da personagem Alice, em “A ceia”. Ricardo, porém, é calculista, um verdadeiro disciplinado a esconder as emoções, o desejo agressivo. Todo o seu rigor e planejamento o fazem ter êxito no plano macabro contra a ex-namorada.

No livro A estrutura da bolha de sabão, também achamos uma história com uma cena de encontro muito parecida com a de “Venha ver o pôr do sol” – embora neste texto de agora, “A testemunha”, o episódio aconteça entre dois amigos, Miguel e Rolf, que escondem um ressentimento do passado, uma emoção que vai se tornar o elemento motivador de um assassinato frio. O diálogo abaixo, pontuado por expectativas quase infantis, é muito parecido ao de Raquel e Ricardo, em “Venha ver o pôr do sol”:

“Enveredaram por uma rua escura, quase deserta. No fim da rua, a ponte, um curvo traço de união entre as margens do rio. A névoa subia mais densa na altura da água. Rolf parou de assobiar.

– Ainda está longe?

– O quê?

– O restaurante, rapaz.

– Ah, fica logo depois da ponte – disse Miguel. E inclinou-se para amarrar o cordão do sapato. – Conheço tanto esse rio, eu morava aqui perto quando criança. (…)

Rolf abotoou a japona. Prosseguiu de mãos nos bolsos, um pouco encolhido. Miguel então veio por detrás e ainda agachado, agarrou o outro pelas pernas, ergueu-o rapidamente por cima do parapeito de ferro e atirou-o no rio. As águas se abriram e se fecharam sobre o grito afogado, se engasgando.” (TELLES, 1999, pp. 26-7)

Aqui também, o assassinato é uma explosão do personagem que até então permanecia controlado, sufocando os sentimentos na disciplina da dor. E igualmente ocorre uma reviravolta de vermos o personagem que inicialmente era mais frágil, ou representava a vítima, tornar-se superior e forte por seu gesto de vingança.

Na mesma linha de companhias ameaçadoras, encontramos Daniela, a misteriosa esposa de Ed, no conto “O jardim selvagem”. Sempre com a mão direita inexplicavelmente metida numa luva, Daniela atira no cão da chácara sob o pretexto de que ele estaria doente e “a doença sem remédio era o desafino, o melhor era acabar com o instrumento para não tocar desafinado” (p.96). É assim, com esse rigor associado a uma metáfora musical, que Daniela se volta friamente contra qualquer tipo de existência imperfeita, o que apavora a pequena narradora desta história, ao saber que o seu tio Ed adoecera: “Quando Conceição veio me anunciar que ele tinha se matado com um tiro, assustei-me à beça. Mas aquele primeiro susto que levara quando me disseram que estava doente fora um susto maior ainda.” (p.97)

Até aqui, as análises feitas já apontam para um traçado do tema da disciplina como um elemento de opressão comportamental, associado à frieza, ao assassínio, ou mesmo à simples frustração de uma vida regulada por regras. As personagens que fogem a esse perfil, entregando-se à sinceridade expressa de suas emoções, podem ser vistas como loucas em alguns textos, mas certamente são mais autênticas e menos “covardes”, como frisou Lygia, no trecho que citamos no início deste ensaio.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de janeiro de 2020)

As Vontades

Imaginemos: de 2020 em diante, as previsões para a cultura e as artes são fabulosas. O Brasil será conhecido como o país que mais investe em educação (morra de inveja, Finlândia) e tem o melhor índice de qualidade de vida (sorry, Butão). A capital do Ceará será pioneira nessa mudança.

Pelas esquinas de Fortaleza, a transformação começa: em vez de múltiplas farmácias, agora temos livrarias, bibliotecas comunitárias, e há cinemas, residências teatrais, escolas de circo em todos os bairros. As praças estão cada vez mais belas, com projetos liderados por ecologistas voluntários. Este termo, aliás, torna-se redundante: praticamente todos os fortalezenses realizam algum tipo de voluntariado. Chega a ser constrangedor encontrar alguém que ainda não aderiu a uma causa: a pessoa se desespera, implorando por uma vaga para auxiliar em hospitais, creches públicas, cozinhas coletivas ou abrigos de animais.

O mais belo, porém, é ver como a cidade cresce, nessa vibração positiva. Cada um encontra sentido e valor na própria existência, e há sempre uma pausa para ver o pôr-do-sol ou ter uma conversa que – dependendo do grupo – acaba em música, dança ou performance. Suspeito inclusive que certas criaturas obtusas entraram em exílio, colapsando com tanta felicidade. Afinal, o que seria de sua rotina, se não pudessem odiar, ruminar, sofrer? Entendamos: a alegria não é destino que toda a gente queira. Mas a partir de 2020, se depender da minha vontade, o lixo da tristeza será varrido, junto com essas cinzas de conformismo. Uma nova etapa nasce.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no jornal O Povo)