Gerhard Richter

“Eu borro para igualar tudo, para tornar tudo igualmente importante e igualmente desimportante. Borro para que o quadro não tenha uma aparência artificial-artesanal, mas técnica, lisa e perfeita. Eu borro para que todas as partes se interpenetrem. Talvez eu também limpe assim o excesso de informação sem importância.”

(Gerhard Richter, em texto retirado do livro Escritos de artistas – anos 60/70)

 

O nosso reino

Valter Hugo Mãe continua sendo um dos meus autores preferidos – embora O nosso reino tenha sido lido aos pedaços, emperrando em várias passagens. Uma sensação de exagero no simbolismo, numa poeticidade que nem sempre convencia, levou-me a certo cansaço. No entanto, persisti, porque este foi o primeiro romance dele, e de fato lembrou-me em alguns trechos o impacto que senti com O remorso de Baltasar Serapião – a mesma atmosfera de fantasia aterrorizante, se assim posso definir.

N’O nosso reino tudo se justifica pelo filtro da infância, a perspectiva de um menino que quer ser santo e se perde em superstições (ou em realidades incríveis, não sabemos ao certo). N’O remorso, a fantasia se instala pelo tempo, medieval e fabuloso, que nos leva para uma zona de extremos. São duas soluções diferentes, mas a obsessão criativa parece ser uma só. Mergulhamos no imaginário de um excelente escritor.

A propósito, descobri no apêndice do livro que Valter Hugo Mãe publica crônicas no Jornal de Letras, em Portugal. Confiram uma delas aqui, se quiserem.

Amor em excesso

Quando a gente pensa que já não acontecem histórias incríveis, a realidade nos desmente. Na semana anterior, fiquei sabendo a respeito de uma paixão lendária em nossa cidade: um casal tornou-se tão embevecido de amor, que os dois literalmente capturam os bons sentimentos ao seu redor.

Durante muito tempo eles passaram incólumes, sugando a energia emotiva dos bairros por onde andavam. As pessoas continuaram se relacionando sem perceber a frieza instalada, a falta de vibração, arrepios, saudade – era como se nada disso existisse. Somente aquele casal vivia as ansiedades do amor, e de tal maneira se entusiasmavam com beijos, abraços e outras tentativas de fusão física, que consumiam toda a carga afetiva antes espalhada entre vários indivíduos.

Foram descobertos por ocasião do recente dia dos namorados. Enquanto diversos pares cumpriam pretensos jantares românticos ou compareciam às reservas feitas nos motéis, um homem e uma mulher eram os únicos a realmente se amar. Não podiam deixar de chamar a atenção, ao caminharem por uma praça: testemunhas viram seus olhos faiscando de desejo, e das mãos unidas parecia transbordar um facho vibrante, agarrando aquele sentimento mútuo, porém terrivelmente egoísta. Por causa de ambos, ninguém mais se amava, não havia equilíbrio possível.

As autoridades religiosas e políticas resolveram se livrar dos acusados. Uma ordem de exílio os condenou à deriva num barco, em pleno oceano Atlântico. Antes dessa opção extrema, militares tentaram extraviá-los para outra cidade ou país, mas ninguém os aceitou. Em qualquer lugar onde estivessem, os dois absorveriam todo o amor disponível. Num barco, sozinhos, talvez eles se curassem.

Não foi, entretanto, o que aconteceu. Em alto-mar, a simples presença deles faz com que peixes e gaivotas, num raio de dez quilômetros, parem de produzir ovos: os bichos entram numa esterilidade contemplativa, ofuscados por aquele amor extremo. Pelas redes sociais da internet, agora começa uma mobilização para trazer de volta o casal. Foi sugerido um protesto em forma de greve, envolvendo filatelistas, poetas e observadores de pássaros. Eles prometem parar suas atividades, caso a dupla amorosa não seja reconhecida como símbolo essencial – e jamais maldição – da humanidade.

 

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje, no jornal O Povo)

 

 

 

 

 

 

Manoel de Barros – três poemas

Do Livro das Ignorãças:

 

As sujidades deram cor em mim.

Estou deitado em compostura de águas.

Na posição de múmia me acomodo.

Não uso morrimentos de teatro.

Minha luta não é por frontispícios.

O desenho do céu me indetermina.

O viço de um jacinto me engalana.

O fim do dia aumenta meu desolo.

Às vezes passo por desfolhamentos.

Vou desmorrer de pedra como um frade.

 

***

O ocaso me ampliou para formiga.

Aqui no ermo estrela bota ovo.

Melhoro com meu olho o formato de um peixe.

Uma ave me aprende para inútil.

A luz de um vagalume se reslumbra.

Quero apalpar o som das violetas.

Ajeito os ombros para entardecer.

Vou encher de intumescências meu deserto.

Sou melhor preparado para osga.

O infinito do escuro me perena.

 

***

 

A luz faz silêncio para os pássaros

– eu escuto esse escândalo!

Um perfume vermelho me pensou.

(Eu contamino a luz do anoitecer?)

Esses vazios me restritam mais.

Alguns pedaços de mim já são desterro.

…………………………………………………….

(É a sensatez que aumenta os absurdos?)

De noite bebo água de merenda.

Me mantimento de ventos.

Descomo sem opulências…

Desculpe a delicadeza.

 

Lila e Vladímir

Para lembrar, neste dia dos namorados (que é também o dia da Rússia!), um dos casais mais intensos da história da literatura:

“Se no deserto tórrido

estenderes caravanas,

lá onde os leões estão de guarda,

pousarei a teus pés

sob a areia fustigada pelo vento

o Saara escaldante de meu rosto.”

(Vladímir Maiakóvski, em estrofe do poema “A flauta-vértebra, dedicado a Lila Brik)

Velhos casais

Faz um tempo que observo os velhos casais. Estudo suas atitudes, embora sem interesse premeditado: simplesmente acontece de eu estar num local, num evento qualquer, e sou apresentada a uma dupla típica. Fico sabendo que são casados há vinte ou trinta anos, sou informada de suas profissões, e aos poucos crio familiaridade com seus trejeitos. Embora sejam várias pessoas, de círculos de convívio distintos, percebo nelas muitas constantes de comportamento – algumas cruéis, que me levam a refletir.

Há, por exemplo, um aspecto controlador nas esposas, algo que me põe constrangida. Vigiam a dieta do marido, regulam suas atitudes como se lidassem com crianças ou homens estúpidos. Elas não beijam mais o companheiro – parece que mal o toleram e talvez sintam certa repugnância, que disfarçam ao investir em acessórios para o apartamento ou para si mesmas. Fazem inúmeros tratamentos cosméticos e (embora nunca rejuvenesçam totalmente) são belas, mas isso as torna ainda mais infelizes. Sentem que desperdiçam cada esforço estético com um homem que não desejam. Pode ser que se divirtam em ocasionais adultérios, mas em geral permanecem casadas por convenção. Gostam de se encontrar com amigas, para disputarem juízos secretos sobre as próprias aparências. O máximo regozijo aparece quando notam o envelhecimento da colega – e nesse dia, é possível que chamem o marido de “meu amor”.

A diferença entre estas mulheres e seus homens é que elas parecem morder uma constante frustração, enquanto eles têm um ar pacífico, seja por resignação ou por verdadeira paz. Parece que vivem melhor, tranquilos sob as ordens e aflições domésticas. Consolam-se com fugidinhas (que podem ser amorosas, mas nunca dentro do sentimento de vingança e desforra com que as esposas conseguem seus amantes), com o futebol ou alguma extravagância na dieta.

Eu me identifico com o temperamento deles; quero ser assim. Deus me livre de virar uma “fiscal do lar”, regulando falhas na decoração ou no cardápio. Longe de mim ter uma preocupação severa com a saúde de meu companheiro. Se me relaciono com um adulto, acho estranho infantilizá-lo. Na verdade, creio que o “amor maternal” que as mulheres supostamente direcionam aos maridos é, quase sempre, um “amor sem paciência”, que sinaliza o fim do romantismo e da libido. Quando se perde a paciência com o parceiro, é porque um pouco antes foi preciso ter e manter essa paciência, sustentá-la com esforço, até que não desse mais. Isso já é destruição, sinal de que o afeto espontâneo, tão docemente despreocupado, cedeu lugar a uma tolerância que vive por um fio…

Existe consolo ao lembrar que há exceções? Sim, pelo menos um pouco de alívio! Conheci também casais que souberam envelhecer juntos, com um amor profundo e ocasionalmente erótico. Esses têm voz doce e andam de mãos dadas: vão trêmulos não pela idade, mas pelo carinho que sentem palpitar, como se ainda fossem dois namorados.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

Exposição na Multiarte

Acabo de voltar da Galeria Multiarte, com uma impressão muito boa. O reencontro com Lygia Clark é sempre muito bom – e ali estava também Hélio Oiticica (emocionante pelo aspecto histórico). Creio que pela primeira vez tive a exata sensação que esperava que um dia a arte neoconcreta me trouxesse – e exemplifico isso pelas obras de Mira Schendel: é algo que só faz sentido ao vivo, com a textura ao alcance da respiração. As suas peças da década de 1970 (ecoline sobre papel artesanal), não deveriam jamais ser reproduzidas em livro; não há como repeti-las em foto, pois têm sua força na matéria pela qual existem.

Também apreciei a desestabilização concreta em Sergio Camargo: suas três peças são um convite ao olhar sobre as formas e seus encaixes. Adorei o trípico fotográfico de Miguel Rio Branco (novamente a textura, mas agora captada por uma câmera: gesso e pedra nas imagens de Santiago de Compostela). As obras de Adriana Varejão igualmente afetam: incomodam, pela angústia das fraturas. Em compensação, Waltercio Caldas não me comoveu, nem Beatriz Milhazes (no artesanato mineiro há coisa florida muito melhor do que os arabescos que ela vende por milhões), nem outros que deixo de citar.

Mas é melhor lembrar as coisas boas, então eu encerro com a revelação que tive pela pintura de Marçal Atahyde, cheia de velocidade (e logo vou procurar saber mais sobre esse artista). O divertido Cildo Meireles também vale a pena. Quem quiser, então, confira: a exposição fica em cartaz até meados de julho, e abre também aos sábados, até as 14h.

Obra de Marçal Athayde