Elza e Elke

O que pode haver em comum entre uma fotógrafa paraense e uma artista visual paranaense, duas mulheres de gerações e mídias diferentes? No fundo, tudo se tangencia e se encontra – de forma que decido reunir aqui as obras de Elza Lima e Elke Coelho. Até porque eu as conheci no mesmo período, e isso já é sinal de convergência, num foro íntimo. A visualidade e o trato com o espaço são outro aspecto semelhante entre elas, embora surja como sutileza, que só se percebe depois.

Elza Lima veio ao Museu da Fotografia de Fortaleza para uma palestra e um curso, “A cor do tempo”. Trouxe suas experiências em viagens e percursos fotográficos, com simplicidade e bom humor perfeitamente sintonizados com suas imagens. A série do círio de Nazaré (ou de outras tantas procissões) mostrou seu interesse pelo registro do “antes”: o preparo, os movimentos prévios das pessoas que ainda não se vestiram completamente para um ritual. Essa é a vida cotidiana prestes a ficar suspensa por um acontecimento; é a cena à beira do futuro.

O menino que mergulha no lago, tendo deixado as asas de anjo na margem; as garotas se amontoando numa pose desengonçada, anjinhos também, prontas para um desfile – apenas individualizadas pelos pés, em sandálias ou botinhas da Xuxa… Elza Lima fotografa desde 1984. Percorre sobretudo a Amazônia, documentando uma rotina sobre águas. Na série “Uma alegria feita manhã”, de 2010, em cores, temos os momentos prévios ao círio de Caraparu, no município de Santa Isabel. Marujos e anjos alvoroçados em torno do andor preparam a viagem de barco até a capela onde será celebrada uma missa.

As fotos parecem pulsar com os ruídos, o formigamento daqueles instantes: pressentimos risadas, chapinhar de pés no rio, gritos de crianças. Nas séries mais antigas, em pb, o mesmo elemento líquido é constante. Meninos emergindo, espumosos como figuras míticas; mulheres tão serenas, com o cabelo longo e liso flutuando; homens que seguram peixes como troféus. Tudo isso é o estilo marcante de Elza Lima.

Mas em algumas de suas imagens mais recentes – pelo trabalho com transparências, pelo instável das cores, que parecem bordadas em verde, azul e cinza nos reflexos da vegetação dentro d’água – vemos um diálogo estreito, agora, sim, com a obra de Elke Coelho. É essa exploração do onírico que as motiva, as formas que se dissolvem ou vaporizam, transcendem a matéria.

Soube da segunda artista por email; uma delicadeza de mensagem chegou a mim, lembrando que nos tínhamos visto pessoalmente em Londrina, mais de dez anos atrás: ela era monitora do Museu de Arte desta cidade, e eu viajava com o grupo teatral Cabauêba, para apresentar no festival de Londrina a peça Linha Férrea, baseada nos meus contos. Pois Elke, nascida em 1983, desenvolveu uma carreira como professora e artista; em 2018, lançou o livro-objeto Coisas de Iracema, que depois ganhei pelo correio. O exemplar é um primor: composto por páginas em lâminas soltas, alterna desenhos e textos curtos, sobre a personagem do título.

O perfil dessa Iracema, tão diferente da figura alencarina que impregna os cearenses, fez com que minha leitura fosse singular. Mas a carga simbólica não é a mesma no resto do país. No Paraná – ressaltou Elke, numa resposta às impressões que lhe mandei – esse nome tem sabor de estranheza, é quase anacronismo.

Num Brasil tão amplo e sujeito aos cruzamentos de culturas e destinos, os museus confirmam a sua habilidade de criar paixões. Também Elza Lima, por suas fotos em exibição, nos leva para outras épocas: seus registros falam de ancestralidade e essência. As duas artistas são igualmente atentas às minúcias, à relevância dos detalhes – e há partículas que se revelam tão vastas, sob um novo olhar! No portfólio de Elke Coelho encontro excertos expositivos: a lâmina de barbear que ganha uma nova perspectiva, as bolinhas de pingue-pongue, as esferas… objetos parecem se organizar num mundo próprio, e os vazios têm poder de ameaça. Sinto que preciso voltar a várias cenas para saber exatamente o que elas me incitam. Existe aqui um aprendizado perceptivo, que se faz aos poucos.

As preferências de Elke Coelho pelo arranjo repetido, pela mistura de palavra com imagem, são ressaltadas em sua tese de doutoramento, defendida na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Área de risco traz os liames entre vida e prática artística. Conhecer um pouco dessa escrita ampliou minha compreensão.

“Tornar tangível” talvez seja a principal tarefa a que Elke Coelho se atém. E – assim como sua personagem Iracema – ela traz “como dom imergir até mesmo em superfícies”. Suas experiências de infância no campo de algodão, suas obsessões com os acúmulos e os desertos, assim conciliados numa estética, atingem alto grau poético no texto-testemunho. Mas a pesquisa vai além: faz com que o leitor mergulhe no ateliê, nos processos dolorosos da criação. A arte é como essa “grande e delicada ferida”– e eu saio da leitura convencida de que ela também é um mundo, cada vez mais expandido.

Tércia Montenegro (texto publicado na seção Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho. Pode ser lido também aqui)

 

 

O outro que me habita

Siri Hustvedt escreveu seis romances, mas o primeiro título dela que me chegou às mãos foi um tipo de autobiografia: A mulher trêmula ou Uma história dos meus nervos. O livro parte de uma experiência pessoal: depois do falecimento de seu pai, a autora começou a sofrer de fortes tremores durante falas públicas, uma situação que não lhe afetava a voz ou a inteligência, mas certamente produzia embaraço. Em pesquisa sobre a sua condição, e ao mesmo tempo em que estudava temas médicos para compor a personagem de um romance, Siri Hustvedt foi coletando reflexões sobre psicanálise e psiquiatria – e os momentos mais interessantes jogam com dúvidas acerca da unidade que constituiria um indivíduo.

“O que realmente sei a meu respeito? (…) O que vem a ser o corpo? E a mente? Cada um de nós é um ser singular ou plural?” Muitas destas indagações, que eu já havia percorrido antes, em leituras de Merleau-Ponty, por exemplo, levaram-me agora a um lugar mais longínquo. Penso se o descontrole físico, ou o desconhecimento de si, pode ser visto como um tipo de ficção, na medida em que indica o alheio, o inesperado – e creio que Siri Hustvedt acompanha este raciocínio, pois poucas páginas adiante explora a escrita automática e a sensação que tantos escritores têm, de que as palavras que produzem lhes são estranhas em certa medida; não nascem (pelo menos não exclusivamente) deles mesmos: “Quando estou escrevendo bem, com frequência perco todo o senso de composição: as sentenças surgem como se eu não as tivesse escolhido, como se outro ser as manufaturasse. Não é minha maneira costumeira de escrever, que inclui polimento, períodos dolorosos de iniciativas e interrupções. Mas a sensação de ser conduzida acontece diversas vezes durante a criação de um livro, em geral nos momentos finais. Não escrevo; sou escrita.”

Estas considerações, óbvio, levam em conta que há diversos graus de consciência, que o interno é formado pelo externo, o sujeito moldado pelo coletivo. Mas elas apontam, sobretudo, para um dinamismo desses atravessamentos. A experiência subjetiva inclui o mundo dentro do sujeito: “visões, sons, cheiros, sensações, emoções, outras pessoas, pensamento e linguagem. Eles estão em nós.”

O que autora entende como o “problema mente-corpo” – e que ela explora não só nestas memórias, mas também em outros títulos – abre um vasto campo. O que a ciência quer dizer exatamente quando distingue o psicológico do fisiológico? Há uma lacuna neste ponto, e é preciso admitir que qualquer ser humano existe numa zona de ambiguidades. A divisão mente-cérebro criou a distinção entre psiquiatria e neurologia, o que reforçou o dualismo orgânico-não orgânico. Estamos acostumados a separar os elementos materiais e imateriais, que constituem um ser.

O livro de Hustvedt virou uma referência no âmbito das reflexões neurológicas. É interessante observar como o seu trânsito flexível entre literatura e ciência abre fronteiras para o pensamento. Como ela diz numa entrevista, “interpretar dados é também uma tarefa da filosofia e das artes”. É inevitável o paralelo com Oliver Sacks, que igualmente narrou casos clínicos como se fossem contos, sob o ponto de observação privilegiado do neuropatologista que ele foi. Siri Hustvedt está bastante interessada nas histórias dos pacientes – mas não somente por uma simples investigação etiológica. Há momentos em que a ideia de unidade a assombra por um lado diferente: “A narrativa não fazia parte da doença? As duas coisas podem ser separadas?” Concordemos ou não com este ponto, sabemos que o contexto nunca merece desprezo: “Existe uma fenomenologia do estar doente, e ela depende de fatores como temperamento, história pessoal e cultura na qual se vive.”

De qualquer maneira, quando alguém entende os benefícios de trabalhar consigo mesmo – apesar de toda a multiplicidade que isso subentende –, acontece um ganho. Fica-se numa posição de “poder colocar a próxima pergunta de um modo sofisticado”. É o que a curiosidade obtém: não a chegada a um fim propriamente dito, mas a chance de crescer cada vez mais no nível da compreensão, que dispara novas perguntas. Para começar nesse caminho, basta se perceber.

Impulsos bizarros que nos habitam, reações inesperadas, estranhezas… O corpo, ao fugir do controle (racional ou social), foi tantas vezes apontado como vítima de possessões espirituais. Mas considere eu que aí está uma atuação do inconsciente – das Es (o isso), conforme o termo inicial que Freud escolheu, a partir de Georg Groddeck, que escrevera: “o homem é animado pelo Desconhecido, que se encontra dentro dele como ‘Es”, um ‘It’, uma força impressionante que dirige tanto o que ele faz como o que acontece a ele” –, ou considere, de maneira saudosista, que há demônios e anjos a se revezarem em mim, sempre tratarei de um íntimo potencial, uma ação secreta. O Eu é um Deus na medida desta complexidade; e o encontro entre dois seres – como este, de mim para você, leitor(a) – envolve um mistério que reverencia o alheio.

Como diz Siri Hustvedt, “há momentos em que olho para uma coisa com tanta intensidade que desapareço”.

Namaste.

 

Tércia Montenegro (texto publicado também em http://rascunho.com.br/o-outro-que-me-habita/)