Ser um movimento

tudo ao mesmo tempoQuanto mais vou ao teatro aqui em Fortaleza, mais descubro razões de êxtase – e a principal delas é saber que divido um tempo e um espaço com certo(a)s artistas tão potentes.

Ontem vi Tudo ao mesmo tempo agora, do Grupo Terceiro Corpo. Visceral, poético, engraçado e reflexivo: esta poderia ser a síntese. Mas a síntese é impossível, diante de qualquer obra valiosa. É preciso estar lá. Ver. Sentir, principalmente, no caso desta peça tão sensorial. Há cheiros e sabores, timbres, gestos, acordes – e eu carrego algumas imagens, ainda vibrando na mente. Nádia Fabrici no solo, dançando Beethoven: perfeita no clássico e no contemporâneo. Nunca vi mãos tão expressivas quanto uma face trágica, e a atriz trouxe isso, o inesperado – e ao mesmo tempo o ancestral – em seu corpo. Sara Síntique fazendo rir e um instante depois emudecendo a plateia, com seu domínio de voz, cantando de olhos fechados, entre um conviva e outro. Jéssica Teixeira virando shiva, multiplicando braços – e com ela o texto alcança o ponto nevrálgico. O texto de Maria Vitória, que – também em cena, além de assinar a direção do espetáculo – retoma as palavras, rodopia com farinha de trigo, faz com ela um dueto efêmero. A vida não é mesmo sopro, poeira?

Enquanto o espetáculo se desenrola, as atrizes cozinham. Preparam um jantar para dez convidados. É contraste ou convívio, o que dispõe o “pensamento-dança” e o “pensamento-comida”? Oscilamos, junto com Úrsula Laura, a protagonista fragmentada pelas quatro atrizes – a figura que não sabia se tinha nascido para explodir o mundo ou explodir no mundo. E essa vira uma dúvida ou decisão de cada um(a) de nós, afinal: soltar o grito ou sufocá-lo. A segunda escolha traz, a princípio, comodidade – mas equivale a um veneno lento, diário.

A pequena ursa que triunfa é patética em sua solidão, em suas conversas com os alimentos, na confissão que faz aos anônimos atraídos ao jantar porque “quase ninguém resiste a comida grátis”. Mas o que é na verdade que alimenta? O que é ser gente? Comer, seguir uma receita – ou fragmentar-se? Ser “só um movimento” talvez resuma o impulso de um(a) artista. Impensável parar: este é um destino (condenação), mas também fornece o melhor sabor à jornada.

Tércia Montenegro

–> Quem ainda não viu o espetáculo só tem mais uma chance: próxima quinta-feira, no Centro Cultural Banco do Nordeste.

Antes do jardim selvagem

Em meio ao vasto repertório das emoções, o ser humano conhece a angústia de ser fiscalizado por atitudes e palavras. O pensamento surge como um dos únicos territórios livres, embora permaneça isolado, impossível de compartilhar. A literatura de Lygia Fagundes Telles (conforme estamos analisando desde o mês passado, nesta coluna) abre uma porta para o lugar da ruptura, dos dramas que se desenvolvem na sombra, no mistério inconfessado – e, assim, vence o isolamento das personagens, faz com que nos tornemos cúmplices de seu sofrimento, com o qual podemos até nos identificar. O ofício da escritora paulista, dessa maneira, também pode ser visto como um ato solitário e – por que não? – muitas vezes doloroso, mas cuja persistência não sufoca; ao contrário, liberta, através do produto estético, da arte.

Nesta parte de nosso trabalho, vamos nos dedicar à investigação sobre a cor verde e o misticismo, sem perder a ligação com o tema da disciplina (visível ou ausente) no perfil das personagens e em seus relacionamentos. Como uma análise exaustiva deste aspecto cromático não cabe aqui, escolhemos detalhar algumas narrativas e fazer uma simples remissão a outras, que o(a) leitor(a) poderá conferir depois.

Do livro A noite escura e mais eu (1995), selecionamos o texto que nos interessa agora, o conto intitulado “A rosa verde”. Esta é uma história concentrada na infância, numa menina órfã que vai morar num sítio com os avós e tem de aprender, com eles, a disciplina diante da dor da morte. A avó, prática e ativa, tem a pequena rebeldia de não se conformar, não comparecer à missa. É um protesto miúdo, embora a neta pensasse que sua atitude seria de escândalo: “(…) tremia de medo só de pensar na Avó Bel. Se na morte da nora ela armou aquele berreiro imagina então na morte desse filho o que ela ia aprontar.” (p.140)

Surge então esse aprendizado da amargura, da domesticação das dores. No segundo luto, a avó não esbraveja mais, apesar de manter-se indignada: “(…) aceitava porque não tinha outro remédio mas não estava conformada. É por isso que não piso nessa missa porque senão Ele pode pensar que me conformei mas Ele sabe que não vou me conformar nunca! Ele era Deus.” (p.142)

A pequena órfã tem de se adaptar à sua condição, comparando-se com o primo João Carlos (que tinha pai e mãe vivos – a mãe era meio amalucada, mas ainda assim estava viva) e confrontando-se com o universo díspar dos adultos. Na vida provisória do sítio (no ano seguinte, a menina irá para um internato), ela descobre o mundo através de sua lupa, concentrada em bichos e plantas que parecem travar uma batalha minimalista e silenciosa, porém tão agressiva quanto a que se vê no resto do mundo:

Fui me acostumando quando fui achando que todos esses insetos eram parecidos com a gente nas suas festas. Nas suas brigas. Trabalhavam sem parar e também vadiavam como naqueles ajuntamentos de domingo no largo do jardim, gostavam de se divertir. E gostavam de brigar e algumas brigas ficavam tão feias que eu fugia com vontade de vomitar. Debaixo da lente era medonho demais ver o olho vazado pelo ferrão cravado fundo e horrível a perna arrancada e ainda tremendo lá adiante ou a cabeça cortada e aquele corpo descabeçado procurando pela cabeça. Na lupa aparecia até a cara preocupada da formiga carregando no ombro o ferido ou o morto, como faziam os soldados nas fitas de guerra. (p.155)

A referência à formiga é importante: veremos mais adiante, em outros contos, como esta figura parece associada a cenas de trabalho e organização. Ao observar seu mundo, a garota aprende sobre o método necessário para lidar com o sofrimento – algo que percebe também na imagem da avó, trabalhadeira, sempre a espanar a casa, arrumando as coisas. Entretanto, ao mesmo tempo a garota não perde a dose de fantasia, através do avô botânico que lhe promete uma rosa verde, a cor da esperança, a única cor que amadurece.

No livro Seminário dos ratos (1984), vemos também uma narrativa voltada para a infância no contato com as plantas e os insetos, encontrando fortemente a associação do verde com o mistério e a morte. “Herbarium” traz a paixão da menina protagonista por um “vago primo botânico convalescendo de uma vaga doença”, o primo que lhe desperta emoções mas também lhe inspira a disciplina do colecionismo. Para criar alguma cumplicidade com ele, ela sai todas as manhãs ao bosque, com o objetivo de procurar folhas raras que pudessem compor o seu herbário.

O método dessa rotina, entretanto, não é o único hábito que o primo inculca na garota; ele percebe que ela é uma viciada em mentiras e pretende mudar seu modo de agir. Fala-lhe sobre as “folhas persistentes” como uma metáfora da verdade, embora a menina o escute com atenção apenas por estar apaixonada, e não necessariamente por valorizar suas palavras.

O conto faz lembrar “A rosa verde” igualmente pela cena da menina vendo o mundo através de uma lupa. E não à toa ela percebe que a mão do botânico é cheia de “linhas disciplinadas”. À semelhança do avô da garota na narrativa citada (que pretendia criar uma rosa verde, produto de ilusão mas também de persistência), o primo desta menina coleciona folhas e parece se absorver pela tranquilidade (ou monotonia?) do comportamento vegetal, tão limitado e estreito quanto a verdade diante das riquezas de uma mentira:

E a verdade era tão sem atrativos como a folha da roseira, expliquei-lhe isso mesmo, acho a verdade tão banal como esta folha. Ele me deu a lupa e abriu a folha na palma da mão: “Veja então de perto.” Não olhei a folha, que me importava a folha? mas sua pele ligeiramente úmida, branca como papel com seu misterioso emaranhado de linhas, estourando aqui e ali em estrelas. Fui percorrendo as cristas e depressões, onde era o começo? Ou o fim? Demorei a lupa num terreno de linhas tão disciplinadas que por elas devia passar o arado. (p.44)

O tema da leitura da linha das mãos recebe, porém, ainda outra nuança, comparável ao desvendamento do futuro, que a tia da menina, Clotilde, havia aplicado ao rapaz. Dentre as previsões feitas, estava a da chegada de uma bela moça no fim de semana: “podia ver até a cor do seu vestido de corte antiquado, verde-musgo.” (p.45)

O choque do ciúme faz a menina desatinar (é um sentimento que leva ao desespero, como se percebe também no conto “Tigrela”); ela se comporta de modo descontrolado e infantil, num tipo de regressão que se torna ainda mais violento pelo contraste com a imagem da formiga (como sabemos, ligada à ordem e à disciplina):

Uma formiga vermelha entrou na greta do lajedo e lá se foi com seu pedaço de folha, veleiro desarvorado soprado pelo vento. Soprei eu também, a formiga é um inseto! gritei, as pernas flexionadas, pendentes os braços para diante e para trás no movimento do macaco, hi! hi! hu! hu! hi! hi! hu! hu! é um inseto! um inseto! repeti rolando no chão. Ele ria e procurava me levantar, você se machuca, menina, cuidado! (p.45)

Pouco depois, a menina foge para o campo, num paroxismo de dor que a leva a chorar e roer as unhas (ela, que tinha começado a se controlar, para não virar uma moça de mãos feias, de repente não se importa mais com isso, transforma-se em puro desatino, graças ao sofrimento).

Mais tarde, ela acredita que o primo está melhorando de saúde, e a alegria de vê-lo se recuperando faz com que ela torne ao bosque num estado bem diferente. Ela distrai-se, observando o mundo dos insetos (novamente, como n’“A rosa verde”), mas há um momento em que, assim como no conto “Anão de jardim”, a menina também encontra um inseto, um besouro, que lhe proporciona uma reflexão voltada para a fronteira entre vida e morte e a própria transformação que tal ciclo indica. Afinal, a garota não estava, por sua vez, sujeita a essas mudanças, morrendo para certos aspectos – da infância – e nascendo para outros – do amor? O começo deste trecho lembra mais uma vez “Tigrela”, pela simbiose entre o animal e o humano:

(…) recuei quando apareceu o besouro de lábio leporino. Por um instante me vi refletida em seus olhos facetados. Fez meia-volta e se escondeu no fundo da fresta. Levantei a pedra: o besouro tinha desaparecido mas no tufo raso vi uma folha que nunca encontrara antes, única. Solitária. Mas que folha era aquela? Tinha a forma aguda de uma foice, o verde do dorso com pintas pequenas irregulares como pingos de sangue. Uma pequena foice ensanguentada – foi no que se transformou o besouro? (p.47)

Certa de que achou um segredo fatal, a garota decide esconder a folha; mostrá-la ao primo equivalia a dar-lhe uma sentença de morte. Porém, quando volta para casa e vê que a tal moça, prevista pela tia Clotilde, chegou, o ciúme torna a fisgá-la. A menina observa o casal como antes observara os insetos e o caminho traçado na mão do primo: por uma espécie de lupa, o vidro da janela.

No final, ambíguo, não se pode afirmar se o desejo de morte (ou a entrega dela, na forma de uma folha mórbida) era um simples ciúme de uma moça real, que viera buscar o primo, tirando-o do alcance da paixão da garota, ou se essa moça já não era a própria morte, anunciada como uma dama de vestido verde: “Fui levantando a cabeça. Ele continuava esperando, e então? No fundo da sala, a moça também esperava numa névoa de ouro, tinha rompido o sol. Encarei-o pela última vez, sem remorso, quer mesmo? Entreguei-lhe a folha.” (p.49)

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, deste mês de fevereiro, no jornal Rascunho)