Mistérios masculinos

“O que quer uma mulher?”, perguntava-se Freud, há mais de um século. A mim, a resposta sempre pareceu evidente, embora longa e complexa. Quanto aos homens, porém, creio que ninguém se ocupou de investigar seus possíveis mistérios – mas eles despontam, inequívocos, se entro, por exemplo, numa loja de ferragens. Vejo ali instrumentos alienígenas, objetos surreais para a minha experiência feminina. Materiais de construção ou equipamentos agrícolas em geral vêm associados a um território viril.

Penso em colheitadeiras, plainas, formões, discos e rebolos, brocas diamantadas, bigornas, tenazes… e o que dizer de um arco de pua ou um jogo de raspilhas em aço temperado? A testosterona pulsa em peças para marcenaria e soldagem, todas essas ferramentas de design que parecem ao mesmo tempo rudimentares e futuristas. Não vou mencionar com detalhes o léxico libidinoso de instrumentos como chaves de fenda ou abridores de rosca: observo grampos de alumínio, gabaritos com furos chanfrados, fresas – e coisas de ar francamente sádico, como um kreg jig (pesquisem), uma morsa mecânica de base giratória, uma chave extensível com garra…

Ah, mas essa estranheza é mero resultado cultural, dirão alguns. Afinal, se durante a infância eu tivesse usado fantasias de pirata tanto quanto as de bailarina, hoje poderia manejar um martelo sem me sentir numa espécie de missão viking. E certamente, se houvesse brincado com tratores em miniatura, estaria mais apta a regular uma ensiladeira, em caso de necessidade – ou desejo.

O hábito é fundamental para criar familiaridade com um assunto, concordo. Mas, ainda assim, acho que os mistérios masculinos são subestimados. Eles estão aí, e quase ninguém fala a respeito. O motivo, suponho, é a primazia feminina na área: mulheres tradicionalmente são tidas como criaturas enigmáticas – talvez por sugestão de sua anatomia sexual, que parece secreta em comparação com a dos homens.

Pensando bem, a sabedoria clássica deve ter lá suas razões… Lembro quantas pitonisas, ciganas e feiticeiras me antecederam, elaborando conhecimentos oblíquos – e não vamos esquecer que a esfinge era fêmea, o que significa que o mistério mais ameaçador provavelmente continuará com essa metade das espécies. Entretanto, nós mulheres não somente propomos enigmas: queremos decifrá-los também. A depender do que descobrimos, tomamos uma decisão a respeito de um homem, e depois disso decidimos se ele merece, ou não, que o devorem.  

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida e Arte do jornal O Povo)

O lugar das máquinas

Examinando a História da beleza do Umberto Eco, parei no capítulo sobre as máquinas – e fui imediatamente transportada, como por um efeito de madeleine, a uma leitura de anos atrás: Locus Solus, de Raymond Roussel. Esse clássico francês, infelizmente pouco conhecido no Brasil, ocupa um lugar de gênio na minha estante.

Mas devo explicações prévias, porque quem me conhece sabe que detesto aparatos eletrônicos, e a definição de liberdade para mim está numa praia naturista, e não num automóvel. Como então fui me interessar por uma leitura sobre máquinas, a ponto de precisar reler uma obra em que artifícios mecânicos se tornam os principais personagens?

Para começar, o capítulo do Eco já seduz pelo aspecto monstruoso, repleto de mistério, em torno do funcionamento de máquinas complexas: “o mecanismo é oculto, interno, e em todo caso, uma vez ativado, procede por conta própria. O terror em relação a elas nascia porque, multiplicando a força dos órgãos humanos, elas acentuavam-lhe a potência, de modo que a engrenagem oculta que as fazia funcionar resultava lesiva para o corpo (…), e sobretudo porque – visto que atuavam como se fossem coisas vivas – era impossível não ver como viventes os grandes braços do moinho de vento, os dentes das rodas do relógio, os dois olhos ardentes da locomotiva à noite. A máquina parecia, portanto, quase humana ou quase animal, e é neste ‘quase’ que residia a sua monstruosidade”.

No início, a humanidade não associava às máquinas um caráter estético: “Elas eram úteis, mas inquietantes: usufruía-se do resultado que produziam, mas eram vistas como seres vagamente diabólicos, logo, desprovidos do dom da Beleza. A civilização grega conhecia todas as máquinas simples e muitas máquinas complexas, como por exemplo os moinhos d’água; seu conhecimento de aparelhos e mecanismos de uma certa sofisticação é revelado pela prática teatral do deus ex machina. Todavia, a Grécia não fala dessas máquinas. Não se ocupava das máquinas, como também não se ocupava dos escravos. O trabalho que realizavam era físico e servil e, como tal, não era digno de uma reflexão intelectual.”

O prodígio mecânico dos inventos passa a ser ressaltado a partir do século XV. Leonardo da Vinci, em seus desenhos, compraz-se em mostrar as articulações de mecanismos: “Giovanni Fontana o precedera em quase um século. Ele projetava relógios manobrados pela água, pelo vento, pelo fogo e pela terra, que com seu peso natural fluía através da clepsidra, de uma máscara móvel do diabo, de projeções de lanterna mágica, de fontes, pipas, instrumentos musicais, chaves, gazuas, máquinas bélicas, navios, alçapões, pontes levadiças, bombas, moinhos, escadas móveis.”

Progressivamente, a máquina vai sendo associada à produção de efeitos estéticos, sendo usada para produzir “teatros” ou soluções arquitetônicas surpreendentes, “como jardins animados por fontes milagrosas, daqueles de Francisco I de Medici até os projetados por Salomon de Caus para o Hortus Palatinus de Heidelberg.” É nessa linha que podemos entender as maravilhas descritas por Raymond Roussel no seu Locus Solus.

Em interessante artigo a respeito do livro, Renata Lopes Araujo comenta como as máquinas descritas por Roussel são “potenciais”, isto é, suscitam nos leitores uma impressão de veracidade e de possibilidade: “Essa impressão é gerada não apenas através da “circularidade” da linguagem rousseliana que apresenta os fenômenos e os explica, ou por meio de descrições exaustivas e explicações detalhadas, mas principalmente através de sua organização eficaz no texto.” Trago desta pesquisadora o melhor resumo que se poderia fazer para Locus Solus:

“O narrador, acompanhado por um seleto grupo de pessoas, é convidado a passar um dia em Locus Solus, uma propriedade situada nos arredores de Paris. O anfitrião, um renomado cientista chamado Martial Canterel, conduz os visitantes através do parque, mostrando e explicando suas invenções e descobertas, entre as quais se destacam um líquido chamado ressurectina, capaz de trazer mortos à vida por um curto espaço de tempo, uma máquina voadora capaz de formar mosaicos com dentes humanos e um enorme diamante cheio de um líquido especial, a acquamicans, dentro do qual dança uma jovem, nada um gato sem pêlos e a cabeça de Danton recobra os movimentos.” 

No século XX, vemos o surgimento de máquinas celibatárias, que não têm utilidade. Conforme Eco, “desprovidas de qualquer função ou com funções totalmente absurdas, [são] máquinas de dispêndio, arquiteturas inteiramente consagradas ao desperdício”. Essa proposta, desdobrada no esteio das exaltações futuristas, aponta para o ato de contemplar a máquina, muito mais do usá-la.

Ressalta ainda o estudioso italiano: “Máquinas celibatárias são aquelas inventadas por Raymond Roussel em Impressions d’Afrique. Mas se as máquinas descritas por Roussel ainda produzem efeitos reconhecíveis como, por exemplo, mirabolantes teceduras, aquelas efetivamente construídas como esculturas por artistas como Tinguely não produzem mais que o próprio movimento insensato, e seu único fim é bater ferragens no vazio.”

Eis como chegamos a uma subjacência filosófica à arte cinética…

E no próprio Locus Solus – se quisermos extrair um sentido desse jardim de artifícios –, é possível que a mensagem última tenha um peso niilista. Afinal, não é a nossa vida igualmente assim, uma sequência de repetições que apenas endossa o funcionamento social, exibível?

Entretanto, para além do seu esqueleto estrutural, Locus Solus fornece muito mais que as linhas de uma obra bem arquitetada. A linguagem se integra com a perfeição harmoniosa ao relato: à maneira das máquinas descritas nesse universo, ela jamais derrapa, ou funciona de modo imprevisto, ou quebra. Em épocas de vale-tudo literário, é um alívio seguir um texto tão maturado. Publicado em 1914, ele talvez demonstre como explodimos, desde então, em proeza industrial – mas encolhemos em disciplina artística.

A consciência de Raymond Roussel quanto ao trabalho que produzia fica bem clara em Comment j’ai écrit certains de mes livres, publicado postumamente em 1935. A autoexegese aparece justificada porque “o procedimento especial” utilizado por Roussel poderia servir a escritores do futuro. O autor, assim, detalha como inicia o processo de criação com um trocadilho de base para explorar possibilidades de jogo linguístico que logo disparam acontecimentos. A partir do manejo e recombinação de palavras, surgiam “equações de fatos”, conforme uma expressão empregada por Robert de Montesquiou em análise dos livros de Roussel. Os desdobramentos do enredo deviam, então, ser resolvidos logicamente (grifo do autor).

Tal método, bastante associado à exploração do acaso surrealista, também lembra a profunda aplicação dos membros do Oulipo aos seus desafios técnicos. Sua eficácia parece incontestável – a não ser por trechos que, pulsantes de ironia, sugerem que o leitor pode estar diante de uma brincadeira, e não de um guia literário. Veja-se por exemplo esta passagem, que traduzo:

“Gostaria de assinalar aqui uma curiosa crise que tive aos dezenove anos, enquanto escrevia Doublure. Durante alguns meses experimentei uma sensação de glória universal de uma intensidade extraordinária. O doutor Pierre Janet, que me tratou durante longos anos, fez uma descrição dessa crise no primeiro volume da sua obra De l’Angoisse à l’Extase (páginas 132 e seguintes); ele me designou sob o nome de Martial, escolhido por causa do Marhal Canterel de Locus Solus.”

Ao final, Roussel também expõe seu trajeto de publicações que passaram despercebidas, bem como as recepções escandalosas de suas peças teatrais, quando foi acusado de louco e mistificador em praticamente todas as montagens. Com um saldo de incompreensão majoritária por parte do público e algumas reportagens “detestáveis”, não se pode acusar o seu método da autopromoção que tanto vemos hoje. O confessionalismo do desfecho nos traz justamente o contrário de um “resultado garantido”: “Eu não conheci verdadeiramente a sensação de sucesso a não ser quando cantava, acompanhando-me ao piano, e sobretudo quando fazia imitações de atores ou pessoas conhecidas. Aqui, ao menos, o sucesso era enorme e unânime.”

Um processo criador que segue construções a partir de trocadilhos, trabalhando com uma lógica implacável, seria de fato tudo, menos popular – porque não é fácil segui-lo. E, além disso, a explicação da gênese de livros como Impressions d’Afrique e Locus Solus naturalmente não esgota, num passo a passo técnico, a riqueza estilística que eles contêm. É uma explicação, por assim dizer, da máquina criativa, de suas engrenagens – mas a qualidade do texto resultante ainda depende do talento pessoal, este item que nenhuma fórmula consegue apreender.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho de maio de 2021)

Deborah B.

Quando conheci o artista Francisco Brennand, sua esposa Deborah, uma importante poeta pernambucana, já havia falecido. E, ao encontrar o gênio que me trouxe a sensação de estar diante de um Monet vivente, eu ainda não sabia nada a respeito da mulher com quem ele havia se casado, muitas décadas antes. Foi somente lendo os diários de Brennand que descobri a poesia de Deborah e caí fascinada.

Os diários, em três volumes, recuperam – com reflexões sobre arte, viagens e política – as aventuras amorosas do autor. Uma lista de mulheres, apreciadas sob os mais diversos comentários (em geral machistas), circula pelas páginas, a partir do período em que Francisco – casado e pai de uma menina – passou uma estada na França. Ele estava no primeiro terço de uma longa vida, e só podemos especular sobre o tipo de acordo em que seu casamento entrou. As amantes de Francisco circulavam às claras; pelo menos a partir de certo momento, não se pode falar de engano, traição.

Quero acreditar que o tempo pacificou sofrimentos, e o casal entrou no estágio de familiaridade que exclui o ardor mas preserva o afeto. A principal pista para esta hipótese encontra-se numa carta que Deborah escreve a seu marido, a respeito de uma casa na cidade de Triunfo. Temos sua reprodução nos diários, e cito aqui o início:

“Esqueça as mulheres. Nenhuma vai suportar. Pense num rude vinho Málaga, esmagado na colheita por uma dança selvagem. Quebre na lembrança cristais e porcelanas e tome o café em caneca rústica numa mesa conventual. Use tachos. Tachos de cobre com as frutas da estação. Mangas e enormes abacates. Não pense em rosas… No máximo aqueles bredos silvestres, boas-noites e trepadeiras entremeando os tijolos vermelhos e os muros de pedras soltas tão comuns à região. O chão é rubro, parece misturado com sangue. Poderia ser uma velha casa inglesa do Yorkshire no verão ou, quem sabe, dos planaltos de Castela, ou o que é mesmo, uma casa sertaneja, sem o aconchego e sem o ordinário conforto, pois que, em se tratando dela, jamais se poderia pensar em heresias tais como: living-art-nouveau-designer-estofados. Entretanto, devido ao frio do inverno assenta-lhe bem ter pesadas mantas sobre sofás de couro e uma maneira digna de viver. A paisagem ao seu redor deixa ver a chuva rachar e as tardes cinzentas pousarem nas muralhas. É triste? Não sei. É bonito? É. É longe? Demais. (…) É casa do passado, com o sótão carcomido e arcos altos, cozinha com nichos abandonados, cavados na pedra. Casa talvez de alguém que nunca escutou a palavra arte mas que viveu no belo. Entretanto, para um desesperado, um fugitivo, um homem que viu guerras, um santo, ou um artista capaz de suportar (evidentemente por loucura) a mais profunda solidão, creio ser este o lugar.”  

Uma autora capaz de tamanha potência num texto, por assim dizer, caseiro, tem justificadas razões para ser conhecida. Antecipo o momento: comprei seus livros, inclusive o romance epistolar Tantas e tantas cartas – porque (é claro) a poesia transcende o verso.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

A mulher que entendeu o tempo

Hoje vou contar a história de uma mulher, uma mulher já idosa, que vive da maneira mais simples, cuidando de sua vida lentamente. Todos acreditam que ela seja assim por causa da idade e porque as dores no corpo já não deixam que se movimente com agilidade. Mas a verdade é que essa mulher há muitas décadas descobriu um segredo sobre o tempo, depois o perdeu e o recuperou de novo. Agora não deixará que ele se perca novamente.

Quando ainda era uma jovem senhora, casada e mãe de dois filhos, essa mulher um dia parou por um momento de fazer todas as atividades que estava acostumada a realizar em sequência. Ela estava sempre cuidando da casa, das crianças ou das tarefas do seu emprego. Às vezes mal lhe sobrava tempo para tomar banho, e ela passava dias sem se olhar direito no espelho, porque outras prioridades e emergências a esperavam, invariavelmente.

Mas, naquele dia, a mulher parou. Deixou de mexer a massa de bolo, sua mão ficou suspensa no ar. O filho caçula gritava no quarto com o irmão, mas ela escutou aquilo como se fosse um som muito distante. Mais perto, bem mais perto, estava o som do seu próprio coração, que ela ouvia agora, como se tivesse posto um auscultador. E ficou tão emocionada como quando ouviu o coraçãozinho dos filhos, nos exames da época em que estava grávida. Ficou mais emocionada, na verdade! Porque é certo que nunca tinha pensado no seu corpo como tendo um coração… uma vida… dentro do tempo!

A mulher passou a atentar para tudo a partir daquele instante. Paralisou diante do copo d’água, contemplando-o. Maravilhou-se com as flores meio murchas na sacada. Ouviu o canto dos pássaros da vizinhança. Tudo aquilo estava ali e ela jamais havia reparado! Ela própria estava ali – e um dia não estaria mais.

O seu estado mágico durou algum tempo, mas logo foi vencido pela rotina. A mulher teve que deixar de lado as suas descobertas, para seguir com o ritmo apressado de sempre, cuidando da casa, dos filhos, do trabalho. E então, muitos anos depois, quando se viu sozinha, aposentada e com bastante tempo livre, ela ouviu dizer que não podia descansar porque senão cairia em depressão. Precisava arrumar um emprego voluntário, fazer parte de agremiações, frequentar clubes… Era um perigo ficar à toa, pensando na solidão e na morte!

Mas o que a mulher fez foi bem diferente. Ela resgatou sua descoberta que lhe dera tanto prazer. Passou a viver com tanta lentidão que conseguia acompanhar o ritmo do próprio pulso – e se alegrava com isso. Essa mulher entendeu o tempo: entendeu que, para viver, o importante é não se distrair.

Tércia Montenegro (crônica publicada no Vida & Arte do jornal O Povo de hoje)