O riso cruel de Nabokov

Lições sobre Dom Quixote (Fósforo, 2023, tradução de Jorio Dauster), é mais um livro que reúne as aulas de Vladimir Nabokov. Eu já conhecia o seu formidável Lições de literatura russa, e cheguei a este novo título com o mesmo afã de consolo que aplicara ao anterior: como, por razões fora de meu controle (a saber, época e local de nascimento), eu não tivera a chance de ser aluna desse magistral autor, pelo menos acessava o seu pensamento didático através de um texto escrito.

O volume reúne a série de aulas sobre a obra de Cervantes, que Nabokov preparou para atuar como professor visitante na Universidade Harvard no semestre de primavera do ano acadêmico 1951-2.

No prefácio, Guy Davenfort comenta que, durante a fase de revisionismo crítico, Nabokov percebeu como “ao longo dos anos os professores norte-americanos haviam amansado o velho livro rude e cruel, transformando-o num mito bem-educado e excêntrico sobre as aparências e a realidade. Por isso, antes de tudo, ele tinha de revelar para seus alunos o texto que se encontrava sob a camada de preciosismo enganador criada por uma longa tradição”. (p.13) Assim, logo no início o escritor adverte: “Terei bastante a dizer mais tarde acerca da brutalidade do livro e da curiosa atitude com relação à crueldade da maior parte dos entendidos e dos leigos, que o veem como uma obra marcada pela bondade e pela comiseração.” (p.39)

Dom Quixote afasta-se da vida real: não tem propósito de verossimilhança e se desenrola em confusões geográficas, ao longo de um tempo mal definido. Existe, por exemplo, um percurso turístico baseado nas aventuras do protagonista. Antes de comprar uma passagem sob a sedução desse roteiro literário, vejamos a advertência de Nabokov: “O cenário balouçante de Dom Quixote é ficção – e, aliás, bem insatisfatória. Com suas ridículas hospedarias repletas de personagens tardios de romances italianos e suas ridículas montanhas cheias de poetastros mal-amados sob o disfarce de pastores arcadianos, o quadro que Cervantes pinta do campo é tão autêntico e típico da Espanha do século 17 quanto o Papai Noel é autêntico e típico do polo Norte do século 20. Na verdade, Cervantes parece conhecer tão pouco a Espanha quanto Gógol conhecia a Rússia central.” (p.24)

Mas o grande caráter alegórico do livro concentra-se na composição de seus personagens: “O velho de Cervantes, que havia lido tanto a aponto de enlouquecer, bem como seu malcheiroso escudeiro foram criados para ser objeto de zombaria. Bem cedo os leitores e críticos começaram a contornar essa diversão espanhola e interpretar a história como outra espécie de sátira: aquela em que uma alma sadia e humana em essência pode parecer insana num mundo crasso e nada romântico.” (p.15)

Contra os docentes preguiçosos, que apenas se contentam em repetir o argumento da sátira, Nabokov escancara os argumentos, retirados de pesquisas fundamentadas: “Quero ressaltar a circunstância de, nos romances de cavalaria, nem tudo serem damas, rosas e brasões, mas haver cenas em que coisas vergonhosas e grotescas aconteciam àqueles cavaleiros, fazendo com que sofressem as mesmas humilhações e feitiços que Dom Quixote. Em suma, Dom Quixote não pode ser considerado uma distorção de tais romances, e sim sua continuação lógica, com os elementos de loucura, vergonha e mistificação incrementados.” (p.83)

Entretanto, nestas aulas o objetivo principal do autor russo consiste em “apontar para a crueldade contida na suposta comicidade do texto” (p.119). Vale a pena citar o seu comentário: “Ambas as partes de Dom Quixote constituem uma verdadeira enciclopédia de crueldade. Sob essa perspectiva, é um dos livros mais amargos e bárbaros jamais escritos. E sua crueldade é artística. Os incríveis comentaristas que se valem de sua posição acadêmica a fim de falar sobre a humorística e piedosa atmosfera cristã do livro, sobre um mundo feliz onde ‘tudo é adoçado pela delicadeza humana do amor e do bem’, em especial os que se referem a certa ‘bondosa duquesa’ que ‘acolhe’ o Dom na segunda parte – esses borbulhantes peritos provavelmente andaram lendo algum outro livro ou enxergaram através de uma gaze cor-de-rosa o mundo brutal do romance de Cervantes” (pp.90-1)

A denúncia de Nabokov se volta não apenas contra a displicência dos acadêmicos, que perpetuam erros por consultarem muito mais a interpretação de seus pares do que o próprio texto literário: critica-se também o horror que essa comicidade representa. A consciência do autor de Lolita se impõe de um modo extremamente atual: “Aqui e ali, crianças com deficiências ainda são tão meticulosamente torturadas por seus colegas em nossas escolas quanto o infantilizado Quixote foi torturado por seus feiticeiros, aqui e ali vagabundos pretos ou brancos recebem pontapés nos tornozelos de parrudos policiais, tal como o vagabundo na armadura e seu escudeiro foram agredidos nas estradas da Espanha.” (p.95)

Em outro momento de sua análise, Nabokov contabiliza as vitórias e derrotas do protagonista ao modo de uma partida de tênis. Seu principal impulso é desmascarar afirmações absurdas da crítica literária: “Em bem conhecido ensaio sobre Cervantes, certo comentarista afirma que, durante sua longa série de batalhas, ‘nunca acontece de [Dom Quixote] vencer’. Obviamente, qualquer pessoa deve ler um livro para escrever sobre ele. Temos condições de refutar a afirmativa incompreensível desse comentarista.” (p.135) O crítico – Joseph Wood Krutch, referido em nota de rodapé – é surrado por uma análise minuciosa, feita capítulo a capítulo do romance, e que prova um empate: “Esse equilíbrio de vitórias e derrotas é muito surpreendente no que parece ser uma obra desconjuntada, sem planejamento. Deve-se a um senso literário secreto, à intuição harmoniosa do artista.” (pp.158-9)

Numa época em que abundam fake news, tanto quanto interpretações tendenciosas, fora de contexto e direcionadas para o engano, as lições de Nabokov vão além da análise de um romance. Elas recordam a importância da autonomia no ato de ler: é perigoso referendar, sem uma experiência direta, o que foi dito a respeito de algo; não podemos nos convencer da qualidade (boa ou má) de um texto, nem de suas características primordiais, se não o conhecemos de fato. A autopropaganda que circula pelas mídias hoje segue a máxima do “finja até ser verdade” – e imagino que Nabokov, contra esses charlatães, também ergueria o seu riso cruel, quixotesco, desmontando a farsa.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de outubro de 2023)