Voltar à inocência

Parece que nos jogaram dentro de um experimento sociológico cruel – eu disse outro dia a uma amiga. E recordei certo estudo sobre a perda do instinto de autodefesa, realizado no início da década de 1960, uma pesquisa atroz que envolvia animais, na tentativa de determinar características do instinto de fuga. Numa das experiências, os cientistas fizeram uma instalação elétrica na metade direita de uma grande jaula, de modo que um cão preso nela recebesse um choque cada vez que pisasse no lado direito. O cão aprendeu rapidamente a permanecer no lado esquerdo da jaula – narra Clarice Pinkola Estés, no livro Mulheres que correm com lobos.

“Em seguida, o lado esquerdo da jaula recebeu o mesmo tipo de instalação, que foi desligada do lado direito. O cão logo se reorientou, aprendendo a ficar do lado direito da jaula. Então, todo o piso da gaiola foi preparado para dar choques aleatórios, de tal modo que, onde quer que o cão estivesse parado ou deitado, ele acabaria levando um choque. Ele a princípio aparentou estar confuso e depois entrou em pânico. Finalmente, o cão desistiu e se deitou, aceitando os choques à medida que surgissem, sem tentar fugir deles ou descobrir de onde viriam.” (pp.306-7)

Nós, brasileiros, somos esses cães exaustos, cansados de tantas tragédias, tanta negligência criminosa. A maioria de nós sucumbiu à ideia de que não se pode escapar da dor: estamos aceitando os choques num estado de embotamento que é pura desistência. O experimento, porém, continua – diz Estés. Quando a jaula foi aberta, o cão permaneceu deitado, sofrendo, sem fugir. Os cientistas concluíram que a violência fizera o animal perder os instintos saudáveis que o levariam a se salvar.

O que pode nos redimir desse “aprendizado da impotência”? Como voltaremos ao desejo de um bem-estar, sem que isso pareça lunático ou ingênuo? Fomos maltratados a ponto de trivializar o anormal: mortes, discursos de ódio, impunidades já não nos revoltam. Estamos deprimidos, parados dentro da jaula.

Mas – quero crer – e se alguém se aproximasse do cão e o abraçasse, trouxesse para ele alívio em vez de dor, conforto no lugar de tortura? Seu trauma não passaria, certo, mas haveria esperança para esse animal dali em diante? Ele poderia seguir, trêmulo, até que aos poucos recuperasse uma pequena confiança na liberdade? O que seria equivalente a esse abraço, para nós?

Violeta Parra, em “Volver a los 17”, canta sobre as reviravoltas salvadoras do afeto. Eu me lembro dos seus versos agora e preciso acreditar que podemos fugir – ainda que num brevíssimo hiato – do contexto miserável que nos derrubou. “Solo o amor con sua ciencia/nos vuelve tan inocentes”, ouço na voz de Mercedes Sosa. E haja esmero, para que tornemos: “Como el musguito en la piedra, sí, sí, sí.”

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

A perfeição de Piero

O famoso estudo de Roberto Longhi a respeito de Piero della Francesca é o tipo de material que se torna deleite não só para os interessados em pintura, mas também em arte literária. Sua pesquisa sobre estruturas figurativas e verbalização da imagem esmiúça, de modo infalível, o elo mágico entre as linguagens. Além disso, como professor na Universidade de Bolonha entre os anos de 1934 e 1943, Longhi soube articular investigação e produção artística de seus estudantes – muitos dos quais foram responsáveis por exposições na época do pós-guerra. Para nós, que não tivemos a sorte de compartilhar tempo e espaço com ele, restam seus livros, porta direta para o pensamento.

O volume publicado pela Cosac Naify em 2007, reunindo os estudos sobre Piero della Francesca, traz a peculiar dicção do crítico. Muitas vezes carregada de floreios, ela acaba por adquirir tom irônico, em alguns instantes chegando ao humor escancarado, como por exemplo quando Longhi descreve um mantel que “desce com a facilidade de um teorema de Euclides” ou analisa um “Cristo horrendamente silvestre e quase bovino, como um sisudo meeiro úmbrio detendo-se, rústico, a contemplar da borda do sepulcro suas propriedades terrenas”.

Também podemos sorrir à descrição de um menino Jesus “obeso e linfático, como todos os contemplativos fundadores de religiões orientais, com aquela infância altiva e triste que, como nos bizantinos, parece se assemelhar à velhice – e o que dizer de um anjo com “rosto mestiço esmaltado e olhinhos de elefante sagrado”? Tudo isso são efeitos de um excesso verbal: se no primeiro momento pode parecer estranho pensar que uma pérola, digamos, poderia ser confundida com “uma preciosa secreção daquela colônia de rizópodes a que vimos se reduzir, sob as raras circunstâncias luminosas, a massa vermiculada dos cabelos”, à medida que o texto avança essa afetação nos diverte e parece gerar leveza, no diálogo com as imagens.

O mais importante, entretanto, é que – ao apontar a perfeição de Piero della Francesca – Longhi não pretende com isso idealizar o artista de modo alucinado, mas acima de tudo busca entender como foi possível o desenvolvimento de uma personalidade como a sua, na cultura figurativa do Quatrocentos. Para isso, recorda-lhe o nascimento, em 1410, “em Borgo San Sepolcro, no alto vale do Tibre, divisa entre a Toscana e a Úmbria”, assinalando como “inquestionável que suas primeiras impressões artísticas, quando menino, derivaram do Trezentos sienense”. O seu amadurecimento estético, porém, ocorreria entre 1435 e 1440, em Florença: “Ali, ele viria a refletir de maneira bem diferente sobre a substância dos fatos, antigos mas ainda solenes, do Trezentos local, e a tomar partido diante das enormes novidades de Brunelleschi, Masaccio, Fra Angelico e Domenico Veneziano.”

Nesse período, apesar de a maior ideia artística do Renascimento, a perspectiva, ter sido invenção do arquiteto Brunelleschi, os pintores seguiam obrigados a acomodar suas figurações entre os vãos, os espaços menos favoráveis. Isso ainda ocorria com Piero por volta de 1452, durante os seus trabalhos na igreja de São Francisco em Arezzo. O problema de ajustar as imagens ao predomínio vertical do gótico acarretava consequências – mas, apesar desse e de outros constrangimentos históricos, Piero conseguiu desenvolver aquela que foi sua “inclinação fundamental”: representar o mundo como “eterno espetáculo em ação”.

O “mundo de Piero se desdobra claro como um tecido colorido envolto por uma fatalidade calma e indiferente”, é o que diz Longhi, e só podemos constatar essa evidência. Mais adiante, ressalta: “as cores parecem nascer pela primeira vez como elementos de uma invenção do mundo”.

As cores “são superfícies medidas e extensas de uma natureza completa que vai se manifestando desde as profundezas sob a luz natural. Essa conjunção deliberada ocorre graças a uma ‘síntese perspectiva’ que, primeiramente, coloca um conjunto selecionado de formas simples em terceira dimensão e, depois, recoloca-as no plano bidimensional como ‘perspectiva cromática’: tal é, precisamente, o segredo da poética de Piero desenvolvida a partir da reflexão, também tendo em vista a forma humana, sobre as mesmas leis que Brunelleschi havia extraído da mensuração dos edifícios antigos”. E, um pouco mais além, Longhi destaca: “é como se Piero previsse e realizasse plenamente o lema, então distante, de Cézanne: ‘quand la couleur est à sa richesse, la forme est à sa plenitude’.”

Sobre os afrescos aretinos, minuciosamente analisados, o crítico assinala: “Nenhum posicionamento espacial ali é gratuito”. Seus comentários atingem momentos entusiasmados, quando o(a) leitor(a) encontra a potência de sua tradutibilidade da imagem em palavras. Vejamos por exemplo esta passagem, que descreve a cena do Encontro da rainha de Sabá com o rei Salomão: “No trecho da rainha ajoelhada diante da pontezinha do Siloés, as damas formam como que uma abside à sua volta: encerradas na avalancha dos mantos, luminosos como geleiras ao sol, rosados, verdes, brancos, elas desenvolvem o espaço predeterminado com o círculo dos cintos, com os gestos de um inconsciente ritual, com a calma elegância das nucas majestosas, com as frontes desabrochadas como bulbos gigantescos sobre o fundo cinza das colinas”.

A grande marca deste livro é, na verdade, a paixão que extravasa da linguagem crítica. Longhi deixa-se arrebatar – seja descrevendo as mulheres com suas “túnicas de cauda marcadas pelo cinto, para conferir uma majestosa elegância de ânforas antigas, coroadas pelas cabeças de terra suave e luminosa”, seja concentrando-se na cor crepuscular do Sonho de Constantino, onde assinala: “aqui, a absoluta novidade é a maneira como Piero transpõe o milagre para a natureza, como se dissesse: o que há de mais milagroso do que uma lua cheia numa noite serena da Úmbria?” Isso não reduz seu rigor de análise, ao contrário do que podem pensar os acadêmicos empedernidos. Saímos da leitura percebendo com clareza os laços que a história vai construir, assimilando em parentesco Piero della Francesca, Van Eyck, Rafael, Caravaggio, Rembrandt e até mesmo Seurat.

Ao final do estudo de Longhi, aprendemos como um artista (não só Piero) torna-se perfeito. A trajetória envolve o respeitoso manejo de influências, a percepção arguta de sua própria época e o salto – que, muito mais que impecável, é visionário – para uma tendência pioneira. A partir daí, trata-se de exercitar inúmeras possibilidades dentro dessa descoberta.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho de abril de 2021)

A HISTÓRIA SE REPETE

“Um homem sem convicções, sem hábitos, sem tradições, sem nome, e que nem era francês, se destaca, por força do que parecem ser os acasos mais estranhos, entre todos os partidos que se agitam na França e, sem aderir a nenhum deles, é alçado a uma posição de proeminência.

A ignorância de seus camaradas, a fraqueza e a insignificância dos opositores, a sinceridade na mentira e a estreiteza mental inflamada e autoconfiante daquele homem conduziram-no ao comando do exército. (…)

Qualquer coisa que ele faça dá certo. A peste não o abala. A crueldade do assassinato dos prisioneiros não é imputada a ele. (…) Na ocasião em que, já totalmente intoxicado pelos crimes bem-sucedidos praticados por ele e pronto para representar o seu papel, ele chega a Paris sem nenhum objetivo, a decomposição do governo republicano, que o poderia ter destruído um ano antes, tinha chegado agora ao extremo, e a presença dele, um homem alheio aos partidos, agora só pode servir para a sua elevação.

Ele não tem nenhum plano; tem medo de tudo; mas os partidos se apegam a ele e exigem sua participação.

  Só ele, com seu ideal de glória e de grandeza (…), com sua louca admiração por si mesmo, com sua audácia nos crimes, com sua sinceridade na mentira – só ele pode justificar aquilo que tem de acontecer.

Ele é necessário na função que o aguarda e por isso, de forma quase independente de sua vontade e apesar de sua indecisão, da ausência de um plano e de todos os erros que comete, ele se envolve numa conspiração cujo objetivo é a tomada do poder, e a conspiração alcança sucesso.

Levam-no à força para uma reunião do governo. Assustado, quer fugir, julgando-se perdido; finge ter um desmaio; fala coisas absurdas que deviam ser sua perdição. Mas os governantes da França, antes sagazes e orgulhosos, agora, sentindo que seu papel terminou, ficam ainda mais confusos do que ele e não falam as palavras que teriam de falar para manter o poder e aniquilá-lo.

O acaso, um milhão de acasos lhe dão o poder, e todas as pessoas, como que numa conspiração, colaboram para ratificar esse poder. Os acasos criam o caráter dos governantes da França de então, subordinados a ele; os acasos criam o caráter do tsar Paulo I, que reconhece a autoridade dele; o acaso cria contra ele uma conspiração que não só não o abala como reforça seu poder.”

     Os parágrafos acima foram retirados de Guerra e Paz (Cosac Naify, pp. 2328-31, em tradução de Rubens Figueiredo). Duvido que o(a) leitor(a) não veja a ascensão de Bonaparte em brutal similitude com o Brasil dos últimos anos… Há muitos outros pontos visionários na grande obra de Tolstói – que, óbvio, não caberiam neste texto. Cito apenas mais uma frase, boa para uma reflexão de domingo: “Vencerá a batalha quem resolver com firmeza que vai vencer.” (p.1612)

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje, no Vida & Arte do jornal O Povo)