A todo instante, estão me propondo – com seduções, ameaças ou chantagens – o desvio das minhas prioridades. Cada assunto desejaria o monopólio, a dedicação absoluta. Mas, se penso na literatura, nas artes e em tudo o que me faz feliz, digo, ao apelo intruso: “Espere um pouco. Sente neste tamborete. O seu lugar não é num sofá confortável. Quando muito, eu lhe darei alguma atenção, de pé, e sempre de um jeito apressado”. Só o amor justifica, para mim, a lentidão.
Se durante as horas “úteis” do dia ajusto a rotina conforme o termômetro alheio, depois do pôr do sol (que em Fortaleza é bem veloz), o foco muda. Meu ritmo se contamina dessa lerdeza de quem busca as minúcias: faço uma pequena refeição, brinco com os gatos, às vezes saio para caminhar (nada de cooper!). Estou me preparando para logo mais, para essa noite que traz uma hora reservada às releituras. Nesses momentos, pouco antes de dormir, volto aos textos que se transformaram em amor permanente, na minha trajetória de leitora.
Na cabeceira, conforme eu esteja com uma disposição reflexiva, aventureira ou descontraída, me esperam Cortázar, Quiroga, Cervantes, Tchékhov, Nabokov. Se me sinto introspectiva, resgato Katherine Mansfield, Sophia de Mello Breyner, Cecília Meireles. E há inúmeros outros, numa estante inteiramente composta de livros lidos e adorados, que aprendi a pegar como quem se debruça sobre um álbum de retratos: conheço sua aparência, então as páginas não se viram com pressa ou mistério – mas ganharam a importância dos afetos reconhecíveis, o bem-estar dessa espécie de retorno.
Não importa que as releituras sejam fragmentadas. Aliás, eu diria que é melhor que assim aconteçam. Ontem, por exemplo, eu queria apenas retomar certo parágrafo de Amrik, o meu preferido da Ana Miranda – e na semana anterior bastava uma estrofe do Neruda, para me sossegar a memória e o prazer. Se um livro no contato inicial seduz pela surpresa, mais adiante continuará seduzindo justamente pela característica contrária: tornou-se íntimo como uma pessoa, com suas feições estáveis.
A releitura é comum entre crianças, que costumam ter suas histórias preferidas, repassadas até a memorização. Mas na vida adulta quase todo mundo perde a disponibilidade para voltar a velhos textos; é óbvio que se prefira a postura “funcional”, de multiplicar leituras e assuntos, devorando-os apenas uma única vez. Afinal, inúmeras exigências impõem a quantidade de informações como aspecto superior à qualidade, sobretudo em época de mídias eletrônicas tão rápidas que se tornam impalpáveis. Entretanto, quantas vezes não paramos, saudosos diante de uma estante com obras que já lemos? Não nos conformamos com aquele único contato, queremos de novo aquela voz, aquele sabor… mas quando? Nas próximas férias ou na aposentadoria?
Eu decidi, com lentidão amorosa, não esperar por nada disso. E toda noite, suspendendo as prioridades que o mundo tenta me impor, releio livros como quem visita sua família. Posso gastar o dia conhecendo coisas novas e interessantes – mas na hora do boa-noite, quero o aconchego de uma arte conhecida e insuperável. Isso me garante um sono pacífico.
Tércia Montenegro (crônica também publicada hoje no blog da Companhia das Letras)
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