O amor de um bom amigo

Pedro e TérciaMinha memória entra em loop sempre que desejo: volto àquela noite na livraria Café com Letras, onde havia algum evento – um sarau, lançamento? Não lembro mais – e no meio do barulho escuto alguém chamar “Pedro Salgueiro!” Olhei na direção de onde vinha a voz; fui lá, rompendo a timidez dos meus 17 anos, e me apresentei. Pouco tempo depois, saía O Peso do Morto, livro de estreia desse autor que conheci antes pelos contos lidos aqui e acolá, com entusiasmo.

Muita literatura se passou desde então. Foi Pedro – não esqueço! – quem me apresentou Kafka, Quiroga, Rulfo, Munro… Até hoje ele continua me indicando novos nomes (seus presentes são invariavelmente livros); prossegue sendo um dos leitores mais compulsivos que conheço – e este é o fundamento óbvio da qualidade do que ele escreve. Os seus contos têm o estilo da sua existência: o mesmo olhar arguto, objetivo, persistente. Numa época em que pela mídia se regurgitam tantas frases feitas, é um conforto (re)ler um autor como Pedro Salgueiro. Ele aposta na própria coerência e sabe que o mais importante é a criação de um universo particular, inconfundível. Só busca isso quem tem alma de artista.

Ao longo do tempo, ambos construímos narrativas dentro e fora de nossas vidas. Sei que dei alguns sustos em Pedro: ele sempre tão calmo, com a voz baixa e os gestos discretos, muitas vezes considerou minhas viagens ou aventuras com espanto. Quando nos encontrávamos e eu falava dos riscos que tinha vencido, escapando de situações tão diversas, geralmente ele ria, jogando a cabeça para trás: “Mulher, se aquieta!”. Em outras ocasiões, quando eu estava superando relacionamentos funestos, ele me fazia ver o lado engraçado da coisa. Pedro sabe como ninguém transformar pessoas em personagens – e há momentos em que apenas se precisa enxergar um desafeto de modo caricato. Gente rala feito caldo de bila, como Pedro costuma dizer, encontrando valores nos inimigos.

Tenho muitas outras cenas na memória. Encontros no Bosque de Letras, reuniões para projetos coletivos – antologias, revistas – aniversários, almoços, passeios e alguns atritos também, que toda amizade fiel conhece pontos nevrálgicos. Mas no conjunto carrego uma certeza maior: se a literatura me trouxe alegrias, a mais especial delas é conviver há décadas com o Pedro Salgueiro. Mesmo se passamos por hiatos de silêncio, cada reencontro se faz tão espontâneo que percebo, ao vê-lo, o imutável amor de um bom amigo.

Tércia Montenegro

Oblomovismo e machismo

Um dos meus projetos de felicidade clandestina envolve alguns clássicos russos, lidos ou relidos numa ordem mais ou menos cronológica, permeados por estudos sobre a história do país e o passeio por outras artes: pintura, balé, música etc. Claro que se trata de um projeto que exige anos – mas essa não é uma razão para abandoná-lo. Eis porque, tendo relido um pouco de Pushkin e Gógol, na sequência eu deveria mergulhar na obra-prima de Gontchárov, o romance Oblómov, que já conhecia por diversas resenhas. Mas nenhum comentário crítico me advertiu para tipo de machismo que iria encontrar neste livro.

Antes que me debruce sobre o tema, entretanto, devo advertir que minha abordagem será escancaradamente parcial. O romance tem muitas qualidades literárias nas construções de cena – sobretudo nos diálogos, que esgrimem um timing cômico primoroso –, mas eu pretendo apenas apontar alguns de seus temperos machistas, tarefa que considero válida por há séculos nos alimentarmos desses pratos culturais, sem perceber como são cozidos.

Ora, é evidente que um texto ambientado numa Rússia ainda feudal lança um olhar bastante preconceituoso sobre as mulheres – diria certa voz anônima, genérica. Mas a questão é que o livro de Gontchárov complexifica a situação: não somente reforça (ou constrói, dependendo da perspectiva) estereótipos que associam a figura feminina a uma entidade sempre altruísta. A tal respeito, a personagem Olga, musa do protagonista, pretende salvá-lo de sua fleuma, de sua preguiça fatal – e confunde essa dedicação com amor. Vejamos alguns trechos:

“E Olga fará tudo isso, ela, tão tímida e silenciosa, a quem até então ninguém dava ouvidos, ela, que mal havia começado a viver! Ela será a culpada de tamanha transformação!

E já havia começado: no instante em que ela começara a cantar, Oblómov já não era o mesmo…

Ele irá viver, agir, bendizer a vida e Olga. Devolver um homem à vida – que glória para um médico quando ele salva um paciente já sem esperança! E salvar a mente de alguém, uma alma aniquilada?…”

Porém, o livro não se detém nessa perspectiva, eu dizia. Sutilmente injeta um perfil de superioridade intelectual em Olga, quando expõe sua eterna curiosidade pelos mais diversos assuntos e sua compulsão pela leitura. É um quadro bem diferente do que vemos traçado sobre Agáfia Matviéievna, a proprietária da casa onde Oblómov vai residir, referida sempre como “burra” e absolutamente voltada para a esfera doméstica, tão disposta ao sacrifício que os problemas financeiros apenas lhe pesam porque podem afetar a dieta de seu patrão. Será esta figura de mulher, que não para de trabalhar em prol do bem-estar masculino, que oportunamente o protagonista vai escolher para esposar.

Há vários pontos de machismo na história, em relações diversas (de Olga com Stolz e do empregado Zakhar com a própria esposa, que aceita suas humilhações e grosserias como se fossem brincadeira). Entretanto, o aspecto mais veemente do livro – por ser o que caracteriza o personagem-título – passa por essa composição de Oblómov: um sujeito criado para as regalias, incapaz de qualquer atitude, um covarde que não toma as rédeas da própria vida. É o caso de reler outra passagem:

“Olga via até que, apesar de sua própria juventude, a ela cabia o papel principal naquela relação afetiva, que dele só se podia esperar uma impressão profunda, uma passividade fervorosamente preguiçosa, uma eterna harmonia com cada batida do pulso de Olga, mas nenhum movimento da vontade, nenhum pensamento ativo.”

Nesse ponto, a voz anônima poderia retornar para dizer que essa letargia não é propriedade exclusivamente masculina. Concordo; em termos científicos, nada no cromossomo Y deve estar associado a uma postura blasée ou inerte. Mas, na prática, quantas toneladas de homens não vagam por aí, representando essa atitude que passa incólume porque não é violenta nem ostensiva? Um machismo que parte da ideia de que as mulheres devem ser as mais esforçadas: elas movimentam o mundo, põe o dia para funcionar, fazem coisas, providenciam resultados. E os homens ficam ali, sendo servidos com um ar de tédio ou doença; lastimam-se, estão indispostos ou deprimidos. Repetem frases que começam por “Ah, se eu pudesse…!” ou “Se eu fosse…!”

Sinceramente, faltam-me dedos para contar o número de tipos que conheci assim, seja por convívio direto ou mera observação. E, se durante grande parte da vida não consegui nomear esse desconforto que sentia, perto de um homem fraco qualquer, um sujeito à procura de uma serviçal, mecenas ou enfermeira que cuidasse dele, hoje tenho bem clara a definição. É oblomovismo. Um caso específico de machismo.

Tércia Montenegro

 

Gatofilia

O tigre na casa – uma história cultural do gato, de Carl van Vechten, é daquelas obras que a gente adquire pelo simples impulso de felicidade. Eu a li numa edição argentina, e foi a chance de conhecer este autor, nascido em Iowa em 1880. Jornalista, crítico de música e teatro, van Vechten também foi fotógrafo, atingindo – numa época analógica, lembremos! – a impressionante autoria de 15 mil retratos, conservados hoje na Biblioteca do Congresso em Washington. Dentre os que estiveram sob o seu clique, famosos como F. Scott Fitzgerald, Marc Chagall, Truman Capote, Billie Holliday e Marlon Brando. Além disso, o escritor é tido como “uma das mais iconoclastas e influentes figuras da Nova York do início do século passado – ainda que poucos se lembrem disso”.

O tom bem-humorado passa por todo este volume, que nos conquista desde o início: “Cada vez que se toca no tema, e sendo moderado pode-se dizer que surge umas quarenta vezes ao dia, invariavelmente alguém diz: ‘Eu não gosto de gatos, prefiro os cães’. A observação dicotômica equivalente, igualmente popular, predominante e banal, seria algo como: ‘Não, não gosto de Dickens, prefiro Thackeray’. Tal como o escritor James Branch Cabell deixou assentado de uma vez para sempre, ‘ao pensamento filosófico essa afirmação parece tão sensata quanto recusar um convite para jogar sinuca com o argumento de que se é fanático por arenque’.”

Há muitos outros trechos deliciosos, que fui pinçando durante a leitura. Os felinos são referidos de diferentes modos: “a pantera do lar”, “a serpente com pelos”, “um ser de veludo”, “esfinge”… E, dentro das questões linguísticas, o autor assinala como especialmente aberrante o adjetivo “gatuno”, com seu sentido pejorativo. Na verdade, “só se poderia descrever como gatuna uma criatura graciosa e elegante, digna e reservada, o epítome da beleza, o encanto e o mistério do amor”. Os estudiosos de Estilística concordariam com essa colocação.

Dedicando-se a uma pesquisa sobre a presença felina em diversas áreas – ocultismo, folclore, leis, teatro, música, ficção –, van Vechten atinge o seu ápice quando trata de literatura e gatos. Dentre muitas curiosidades, o escritor nos faz saber que no “notável volume em que Cesare Lombroso intenta demonstrar que todos os gênios estão contaminados pela loucura, o italiano dirige seus dardos para Charles Baudelaire. Motivo: escreveu três poemas sobre gatos. Mas se os três poemas bastaram para enviar ao manicômio o autor de Les fleurs du mal, a madame Deshoulières, que escreveu mais de uma dúzia, a Heinrich Heine e a Joseph Victor von Scheffel teríamos que amarrar com camisa de força e aplicar-lhes a cura da água!”

Talvez Carl van Vechten nunca tenha ouvido falar de Nise da Silveira – senão, com que prazer citaria sua medicina, em tudo contrária à agressividade das propostas lombrosianas! A psiquiatra brasileira, além disso, enxergou de forma pioneira a importância dos animais como auxílio terapêutico. E, ultrapassando este aspecto “utilitário” de sua presença, Nise escreveu um livro precioso: Gatos, a emoção de lidar. Nele, por exemplo, ressalta o repúdio que Montaigne tinha, retirado no seu castelo a escrever ensaios (na companhia de sua gata), a “essa realeza imaginária que o homem atribui a si próprio sobre as outras criaturas”. E acrescenta: “Posição, portanto, oposta à de Descartes, nascido no fim do mesmo século em que nasceu Montaigne. Para Descartes, só o homem pensaria e vivenciaria sentimentos. A cruel visão cartesiana lisonjeia a arrogância do homem. Por isso predomina essa vaidade no homem até hoje.”

Bem antes que o termo especismo fosse cunhado, para se referir à discriminação praticada pelos humanos contra outras espécies, Nise da Silveira já – por sua inteligência e sensibilidade – lamentava que Montaigne fosse menos seguido que Descartes.

Sei que existem vários outros livros sobre gatos, e prever que encontrarei ainda diversos títulos sobre o assunto me faz antecipadamente feliz. De maneira geral, o tema – assim como os gatos em si – me põe sorridente. Por causa dessa descontração involuntária, inclusive, eu me tornei amiga de muita gente. Fala-se em gatos: isso me leva subitamente a conversas desenvoltas. Aliás, sempre perco a timidez se vejo alguém com um bicho; faço perguntas, papeio nem que seja por um minuto.

Entretanto, descobri que há quem se aproxime de gatos por motivo torpe. Mais de dez anos atrás, alguém que conheci – e que me procurou como se eu pudesse lhe passar “fórmulas” para prosperar na literatura – essa pessoa (que até hoje, pelo que sei, investe lamentavelmente no projeto de se tornar best seller) enfiou na cabeça que o êxito de algum modo estaria associado a gatos. “Com gatos em casa, você parece uma autêntica escritora”, disse, e depois de algum tempo – embora preferisse poodles –, a tal figura me informou por e-mail que havia adotado um casal felino. A mensagem tinha um tom triunfante, como quem põe nas entrelinhas: “Agora estou no páreo!”. Fiquei feliz pelos bichos, que já não corriam risco nas ruas, e também achei que eles poderiam servir como lição de paz, beleza e contemplação. Quanto ao sucesso que a ansiosa criatura esperava abocanhar, tive vontade de dizer: os gatos são deuses, mas às vezes – simplesmente – não querem fazer milagres.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho deste mês)

Poema, palavra feminina

Nina Rizzi me ensinou: poema é palavra feminina. A poema. Que reviravolta no sentido, que expansão se abre com este claramente adequado artigo, que coincide com a primeira e mais larga de nossas letras! Ahhh!

Passo agora a pensar dessa maneira, a vista fértil das possibilidades: sofisma, mapa, tema, artista, maquinista, cinema, planeta… Uma área léxica amplamente feminina. Todas as coisas parecem fartas. Nascem alvíssaras.

Penso também em Sara Síntique, que fala de águas (enquanto Nina trata de sereias: a liquidez é feminina, igualmente). Suas poemas me chegaram na mesma data – quero dizer, na mesma dia – e tive em mãos aquela peça – Concha – que, tendo-a lido antes, já se tornara minha preferida:

fecho em torno do ouvido a mão

e a outra

disseram que há um mar em nós

um mar

isso que ouço?

instável quanto?

desbravável? ou

impossível a um navegante?

pacífico? ou

impossível a um navegante?

queria invenção duma bússola

pra isto que ouço

quem trouxesse uma agulha

magnetizada

 

um norte?

 

fecho em torno do ouvido a mão

e a outra

 

algo ecoa

 

(já é muito)

 

Temos mares em nós. Ah!

Grata, Nina e Sara – pela vogal de força que vocês carregam. Com ela, não fica necessariamente mais fácil (mas com certeza se torna aprazível) navegar.

Tércia