Salvar uma palavra

Há uma semana faleceu Javier Marías, escritor madrilenho. Por muito tempo, acompanhei suas publicações, lendo com prazer os romances “Coração tão branco”, “Amanhã, na batalha, pensa em mim”, “Negro dorso do tempo” e “Os enamoramentos”. Apesar disso, o livro que sempre torno a folhear é um pequeno volume de entrevistas, que comprei em italiano, durante uma viagem. “Quero ser lento”, impresso pela Passigli Editori, traz conversas de Javier Marías com Elide Pittarello, e não sei o que me atraiu mais neste volume – se a ideia, bem-vinda, de também “conversar” indiretamente com um autor admirável, se o título (pois também almejo a lentidão), ou se a imagem da capa (uma foto de Marías, pouco nítido, sentado numa escada que lhe serve para alcançar os livros que aparecem atrás, em fileiras coloridas de uma estante interminável). Seja como for, o conjunto destas entrevistas é uma preciosidade; jamais deixo de aprender com elas.

Um trecho em especial me comove: quando Javier Marías conta do salvamento de certa palavra. Membro da Real Academia Espanhola, ele fez parte da comissão responsável pela revisão do dicionário da língua – que, periodicamente, necessitava expurgar alguns termos, arcaicos, para que novos lexemas fossem incorporados. Claro está, as palavras antigas não desapareciam completamente: permaneciam na história do idioma; entretanto, o seu registro era eliminado do dicionário contemporâneo, caso o vocábulo não fosse documentado na prática, literária ou cotidiana, mais recente.

Então, comenta Marías, aconteceu de analisarem a palavra “acercanza”. Não era o mesmo que “cercanía” – óbvio, não há sinônimos perfeitos e, como observa o autor, “cada palavra tem sua sonoridade que a faz levemente distinta”. “Acercanza”, além disso, “era empregada num senso poético, falando de uma possível briga, ou seja, a propósito de alguém com quem não se quer enredar num corpo a corpo e, assim, procura-se evitar aquela ‘acercanza’. Adotava-se o termo num contexto de violência, para dar maior variedade semântica”, explica o autor, em sua recordação.

Os membros da Real Academia Espanhola suspiravam, lamentando o destino da palavra, o expurgo por arcaísmo. “Mas então Gregorio Salvador, que é um dos anciãos, sugeriu: ‘Muito bem, se vocês agora a utilizarem, ela ganha uso atual; se a colocarem num artigo, por exemplo; vocês escrevem artigos para os jornais…’, conta Javier Marías, e acrescenta que imediatamente fez aquilo, assim como Arturo Pérez Reverte, que estava na mesma comissão, e alguns outros.

Quando um escritor salva uma palavra, imagino que em certo nível salva, também, sua própria vida.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Isto não é o real

Quando Michel Foucault se pôs a escrever Isto não é um cachimbo, fazia poucos meses que René Magritte (autor do célebre quadro homônimo) tinha morrido. Cinquenta e cinco anos depois, este curto livro continua uma obra indispensável para se pensar sobre questões de representação. No Visada – Grupo de Investigação do Texto Visual –, coletivo de encontros que coordeno na Universidade Federal do Ceará, recentemente exploramos as possibilidades desta leitura.

Foucault começa por se dedicar a um desenho de 1926, dentro da série de experiências magrittianas das quais, com certeza, a mais famosa é a tela a óleo que mostra a figura de um cachimbo suspenso num fundo marrom, acima da frase “Isto não é um cachimbo”. O jogo paradoxal, que costuma levar o espectador a sorrir e duvidar, na verdade explica-se de maneira bem lógica: um desenho não se confunde com a coisa real, posta no mundo. Isto é o desenho de um cachimbo, não um cachimbo de fato – eis o que o gesto do pintor quer indicar.

A interpretação, porém, ganha em complexidade, se analisamos a tela com base na dupla composição (verbal e visual) que ela apresenta. Concentrando-nos na frase, apenas, podemos nos voltar para o signo determinante, o isto, que obviamente não é, sob possibilidade alguma (lexical, visual ou existencial) um cachimbo. Esse abismo representacional, gerado pela distinta natureza das linguagens, faz com que jamais possamos atribuir aos vocábulos o mesmo tipo de “colagem” com o mundo que as figuras podem ter.

Sabemos (já desde os estudos de Saussure, que fundou a Linguística) como a constituição de uma palavra funciona como uma moeda de duas faces – significante e significado –, sem espaço para o objeto real. Essa independência da língua, sua capacidade de funcionar como um instrumento comunicativo autônomo, garante a sua complexidade psíquica: a partir do instante em que o sistema linguístico é aprendido por um indivíduo, sua mente dispensa estímulos externos para que tal idioma seja utilizado. É corriqueiro, entretanto, que a palavra funcione como substituto do real, nas evocações as mais diversas de imagens mentais que produzimos, por exemplo, ao ler. Mas mesmo assim (como demonstra Foucault, e não somente ele), o caráter da linguagem verbal cria uma distância com a figuratividade, não se confunde com as formas dos objetos – portanto, essa substituição, ou simulacro do real, acontece num nível diferente do que encontramos na pintura, nos textos visuais.

O imediatismo da decodificação é um ponto que “facilita” o reconhecimento das formas, que então leva automaticamente ao tema, quando lemos uma imagem. No caso de quadros, desenhos ou fotografias de cunho realista, é isso o que acontece, em geral: um processo simplista de exame que leva o nosso cérebro, diante da tela, a detectar a silhueta arredondada do fornilho, depois estirada, do tubo, e a partir daí constatamos a familiaridade desse perfil com um objeto conhecido (e, dentro da cultura belga de Magritte, ainda mais do que para nós). Não falta nada para que possamos garantir intimamente: isto é um cachimbo. O pintor, porém, nos diz o contrário, e bem abaixo da imagem, à guisa de título ou legenda.

A contradição instaurada pelo diálogo entre texto verbal e visual pode parecer, a alguns, característica do surrealismo. Magritte, ao contrário de outros artistas desta estética, não foi um extravagante que se dedicou a pintar cenas de pesadelo ou fantasmagoria. Criou figuras híbridas, sim, e situações impossíveis que desafiam as leis da física – mas constantemente sua paleta, e mesmo as proporções de seus quadros, além do traço, sempre tão perfeito e contido, têm um pendor minimalista. Mais do que chocar o espectador, Magritte desejava levá-lo a pensar, a partir de uma dúvida, uma estranheza ou vaga inquietação.

A problemática representacional detalha-se na obra de Foucault com a distinção entre semelhança e similitude. Cito, em edição da Paz e Terra (1988): “A semelhança serve à representação, que reina sobre ela; a similitude serve à repetição, que corre através dela. A semelhança se ordena segundo o modelo que está encarregada de acompanhar e de fazer reconhecer; a similitude faz circular o simulacro como relação indefinida e reversível do similar ao similar.” (p.61)

A similitude, portanto, ocorre dentro de um espectro amplo, muito mais produtivo: “A similitude multiplica as afirmações diferentes, que dançam juntas, apoiando-se e caindo umas em cima das outras.” (p.64) Em contrapartida, o próprio Magritte afirmava, conforme lembra Foucault, que “só ao pensamento é dado ser semelhante; ele assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece; torna-se o que o mundo lhe oferece”. (p.64) A imagem mental, ou a palavra pensada, substitui o objeto do mundo, dispensa-o – o que não é, absolutamente, o procedimento instaurado pela criação plástica. A pintura se impõe como “afirmação do simulacro, afirmação do elemento na rede do similar” (p.65), e tal consciência a liberta de um papel meramente ilustrativo.

Vale a pena lembrar como Magritte, em seus Écrits complets (Flammarion, 2001), por diversas vezes refletiu sobre as fronteiras e propósitos da arte – particularmente sobre diferenças entre comunicações linguísticas ou imagéticas. Ele pontua, por exemplo, que “uma palavra pode tomar o lugar de um objeto na realidade” e que “tudo tende a fazer pensar que não existe relação entre um objeto e aquilo que o representa” (p.60): reflexões que convergem com as ideias foucaultianas há pouco mencionadas.

Outros aspectos – como a percepção de que “num quadro nós vemos de maneira distinta as imagens e as palavras” e “as figuras vagas têm uma significação tão necessária e perfeita quanto as bem definidas” (p.61) – provavelmente serviram de mote para que Foucault, a partir do capítulo três de seu livro, trouxesse obras de Klee e Kandinsky para mostrar como, apesar de atenderem a outras estéticas, elas alcançam o mesmo estado de desconstrução que vemos nas ambiguidades de Magritte.

Klee, em alguns quadros, justapõe formas e signos: “Barcos, casas, gente, são ao mesmo tempo formas reconhecíveis e elementos de escrita. Estão postos, avançam por caminhos ou canais que são também linhas para serem lidas. As árvores das florestas desfilam sobre pautas musicais. E o olhar encontra, como se estivessem perdidas em meio às coisas, palavras que lhe indicam o caminho a seguir, que lhe dão nome à paisagem que está sendo percorrida.” (p.40).

Kandinsky, ainda mais desapegado do “laço representativo”, interessava-se apenas pela composição em sua estrutura interna, pelas “coisas” que pertenciam àquele texto visual, “afirmação nua que não toma apoio em nenhuma semelhança e que, quando se lhe pergunta ‘o que é’, só pode responder se referindo ao gesto que a formou: ‘improvisação’, ‘composição’; ao que se encontra ali: ‘forma vermelha’, ‘triângulos’, ‘violeta laranja’; às tensões ou relações internas: ‘rosa determinante’, ‘para o alto’, ‘centro amarelo’, ‘compensação cor-de-rosa’. (p.42)

A gramática dos três artistas não se vincula em nenhum procedimento (Foucault ressalta que “ninguém, em aparência, está mais longe de Kandinsky e de Klee do que Magritte”), mas a sua mensagem é idêntica. A suposta exatidão das formas em Magritte se torna um modo secreto de questionar obviedades – talvez até com efeito mais perturbador do que aquele atingido pelo estilo abstrato.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de setembro de 2022)

Pelo Centro

Descubro, a partir de estudos sociológicos, que é nos centros que as cidades têm sua maior concentração de loucos. Em Fortaleza, não poderia ser diferente: basta um passeio rápido para constatar a estranheza de muitos personagens que perambulam, sossegados. A multidão em torno das lojas os camufla ou descontrai; vários loucos — reduzidos a essa condição pelo alcoolismo ou por uma grande perda (inclusive as de amor, porque ainda há quem assim enlouqueça) — distraem a solidão com a companhia anônima e fugaz dos transeuntes.

E antigamente era igual. Os livros documentam loucos célebres no passado desta cidade: Tertuliano (um místico desvairado), Jesuíno Rosendo (conhecido como o Palhaço Leproso), o Homem das Medalhas e outros mais — além de tipos populares curiosos, como o Manezinho do Bispo, o Pilombeta, o Chagas dos Carneiros e da Gaita e tantos que não foram registrados. Todos eles frequentaram o Centro, claro, pela sua oferta de gente, de espaços velhos a lembrar saudades. Talvez ainda hoje esse louco fotógrafo, que vejo há muitos anos com negativos de filmes enrolados pelos braços e pescoço, pense que vive no século XIX. Ele circula a praça do Ferreira, buscando identificar o café Java, onde começou o movimento artístico da Padaria Espiritual. Quer fotografar Antônio Sales em seu paletó branco, tendo ao fundo a Coluna da Hora — e o doido rastreia as pessoas, segurando uma câmera feita de papelão.

Também há os pagadores de promessa, com um olhar fanático. Eles se benzem diante do Cine São Luís, confundidos pelo nome do santo e pela aparência luxuosa do local. Peregrinam, cheios de medalhas nos andrajos, levando oratórios ou estatuetas enroladas em terços. Passam pela Santa Casa de Misericórdia, benzem-se novamente e sentam num dos bancos do Passeio Público, a meditar. Depois de um tempo vão subindo as ruas na direção contrária. Na Cidade da Criança, param de novo para um repouso. Contemplam os jovens que saltam de árvores a muros e escalam rampas, num perigoso parkour. Não entendem nada daquele esporte, ou da necessidade que o casal adiante tem, de usar um celular em vez de observar o lago ou os pássaros.

Reparo em outras figuras bizarras, conforme ando pelo Centro. Vou motivada pelas artes, e assim visito o Espaço Cultural dos Correios, o Theatro José de Alencar, ou o Sobrado José Lourenço (no caminho há profetas apocalípticos, esbravejando nas ruas). Aproveito para entrar em armarinhos, ou nos boxes de artesanato da Emcetur (encontro uma velhinha vestida de remendos: é a versão feminina do Bispo do Rosário). Procuro a Catedral, com seus vitrais, seus arcos sagrados (em frente, na loja de redes, sorri um menino lunático). Vou ao Mercado Central e depois volto sobre meus passos até a Praça dos Leões, vejo a Academia Cearense de Letras (um rapaz jovem e sujo dorme no colo da estátua)… Sempre que ando por aqui, no coração de Fortaleza, tenho a sensação de conhecer o povo — e compreendê-lo.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Foto retirada do site do Mapa Cultural do Ceará, da Secult