Pandemundo

No canal do psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet, uma live do mês de junho traz uma conversa com Colette Soler, a principal herdeira das bases lacanianas. Essa pensadora já havia me capturado desde o seu livro O que Lacan dizia das mulheres, que uma pessoa querida me emprestou e até hoje não consegui devolver (por causa da quarentena, juro).

Pois bem, no tal vídeo, disponível no youtube, parte-se do conceito de “Pandemundo”, discutido por Soler para o levantamento de questões pertinentes a uma pós-epidemia. O assunto enseja inclusive um debate sobre a incidência política da psicanálise: afinal, esta, conforme Lacan, é uma compensação, o “pulmão artificial de um mundo que se tornou irrespirável”. Vale notar como o autor francês ultrapassou profeticamente a metáfora, se lembramos a atuação da covid, prejudicando sobretudo a capacidade respiratória.

O psicanalista recolhe o que sufoca, nas urgências subjetivas. Se isso parece ser algo essencial, não se torna necessariamente popular, tendo em vista que analisar o sofrimento nem sempre significa apaziguá-lo (o que outras terapias psicológicas parecem perseguir de modo imediato). E esse girar em torno da “impotência da verdade” agora talvez se defronte com circunstâncias ainda mais singulares.

A retomada dos hábitos e valores antigos, vinda com o desconfinamento, será um golpe nos que acenavam com utopias. Mas de fato torna-se difícil perceber o que muda na realidade, no que Lacan mencionava como esse “caminhar nas profundezas do gosto”, da escolha em si. A relação do sujeito com a morte – o significante-mestre – certamente foi responsável pela virada que despertou quase todos nós, por alguns meses em 2020. O temor da morte se tornou planetário; o evento foi, portanto, histórico.

Porém a hipótese de um despertar da humanidade, após o estupor, é polemizada pela frase de Lacan: “Quando despertamos de um pesadelo, é para continuar a dormir”. Eis o grande risco que vivemos: todas as reflexões, autoaprendizados, atitudes solidárias e políticas, decisões ecológicas e anti-consumistas, tudo o que de certa forma ganhamos com o pesadelo que nos tirou de uma vida mecânica em prol do(s) sistema(s) poderá persistir?

Talvez já estejamos readormecendo, diz Soler. E sobretudo a partir de agora, com uma reabertura ou “flexibilização” dos serviços e atividades públicas. Algumas pessoas começam a roncar, outras foram decididamente engolidas pelo velho estado catatônico, confundindo felicidade com rotina. Como bem pontuam os psicanalistas, o choque pode ter sido mundial, mas as respostas são particulares. O trauma revela o temperamento – ou a fantasia, o sintoma, aquilo que cada um tem na sua individualidade.

Eu sinceramente me apego aos que persistem atentos, validando mudanças que aconteceram em si próprios. Em respeito a esse processo, resistimos ao mecanismo anestésico de tudo o que se vende – e venderá – como “normal”.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

 

 

De si, para o todo

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Nos últimos tempos, observei alguns ataques voltados para quem – às vezes mais com o exemplo do que com palavras – busca transmitir otimismo, paz. Para além de um debate sobre atitudes conformistas ou revoltadas, noto que as pessoas de vida zen, desambiciosas, ostentam duas características que devem potencializar a irritação dos exasperados: 1) uma espécie de equilíbrio que faz com que pareçam sempre inabaláveis; 2) um ar meio lunático, pelo qual costumam ser julgadas como improdutivas. De fato, comparada à vida de gente “comum”, a existência dos indivíduos zen lembra um largo espaço sem mobília, silencioso, limpo, tendo como atrativo o próprio vazio.

A desaceleração dos gestos e o constante questionamento sobre se algo é ou não essencial (um modo de pensar no útil que é bem mais profundo) fazem com que essas pessoas sejam extremamente concentradas, ao contrário do que seu semblante sugere. Mas é que o foco – quando não se confunde com controle ou preocupação – significa tranquilidade. Você finalmente achou o eixo (estava tão perto!) e não precisa mais se inquietar; você se mantém alerta simplesmente porque, assim, a vida acontece em sua forma mais abundante.

Se existe uma ilusão nos modos de existência, creio que ela está sobretudo em associar a riqueza a algo externo, exibível ou concreto – e, desde muito cedo, incentivam esse tipo de ambição como se fosse a máxima qualidade, a régua do valor real. Imagino o que seria de nós se, enquanto sociedade, tivessem-nos instruído a enxergar no outro, em vez de um juiz ou rival que nos oprime, vigia ou ultrapassa, somente alguém para a partilha de experiências.

Se nos tivessem dito que cada jornada é única e incomparável, e por isso a inveja é uma reação absurda; a ambição mesma só se justifica como um crescimento pessoal – jamais como uma concorrência ou disputa. Se, assim nos ensinando a olhar para dentro (onde achamos nossas autênticas predisposições, nossos talentos – que estão sempre em torno do que dá prazer), depois nos convidassem a olhar para fora e encontrar, no mundo, o que melhor corresponde à nossa personalidade, em termos de lugar, ambiente, profissão… Se todo esse processo fosse visto de maneira fácil, e não como uma “luta” – ou seja, se os aspectos materiais não fossem circunstâncias punitivas ou injustas –, estou certa de que a vida zen não seria tida como um luxo, não haveria quem a criticasse por parecer uma opção de alienados. Ao contrário, quem se torna alheio, apartado do fundamento da existência, é aquele que se vê apenas enquanto peça, obediente e eficaz, girando no motor social.

O indivíduo zen, debruçado sobre o interno, conecta-se com o universo, que é sempre maior do que qualquer sociedade. É, na verdade, o absoluto, o Todo – mas quem chega tão perto dessa fusão anti-ego acaba rotulado como individualista pelos que, preocupados em fabricar rótulos, cultivam a ignorância sob uma capa retórica.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

 

Depois da noite escura

Florencia Rodríguez Giles

Na obra de Lygia Fagundes Telles, percebemos que existe um processo temporal no aprendizado da dor, de sua contenção: os personagens jovens, justamente pela pouca experiência, não apresentam grande controle emocional. O conflito em torno de gerações diferentes surge, em vários textos, através de um relacionamento com caráter sexual ou simplesmente familiar. Dentro do primeiro aspecto, citamos “Você não acha que esfriou?” e “Boa noite, Maria”, do livro A noite escura e mais eu; no segundo caso, “O Espartilho” e “Missa do galo (variações sobre o mesmo tema)”, publicados n’A estrutura da bolha de sabão.

Em “Você não acha que esfriou?”, temos uma mulher já envelhecida, Kori, enfrentando um ato sexual fracassado com o simulacro de amante que arranjou – na verdade, um homem que está apaixonado pelo marido dela e quis levá-la para a cama somente por curiosidade: “Quis apenas ver nos detalhes a mulher com a qual esse outro tivera seus orgasmos. Poucos, é certo.” (p.53)

A humilhação com o próprio corpo exige o enfrentamento, como uma dor levada ao extremo, quando Kori se desnuda e se expõe sob as luzes do banheiro:

– Mas eu estou à vontade – ela disse e teve um olhar complacente para a própria nudez refletida no espelho. Desviou o olhar para o homem. – Seu banheiro, Armando. Tanta luz, tanta claridade, é terrível. (…) Não, por favor, não apague nada, deixa assim. Um banheiro glorioso.  

Kori confessa a Armando que o marido, Otávio, fez com ela um casamento por interesse financeiro e agora engravidou a amante: sabe que esta notícia vai desesperar o rapaz. É assim que a vingança de Kori acontece ao mesmo tempo em que ela se mostra em toda a sua fragilidade. Seu autocontrole é o que permite esta pequena e dolorosa conquista: “E ficou séria, vendo a água de mistura com a própria voz escorrer estilhaçada até desaparecer no ralo.” (p.61)

Os problemas com a aparência, conforme a velhice se instala no corpo, são constantes nas reflexões dos personagens lygianos. A decadência física e a solidão caminham juntas, e no conto “Boa noite, Maria” este último ponto atinge proporções dramáticas. Na história, temos dois estranhos que se encontram na saída de um aeroporto: ela, Maria Leonor, uma rica mulher de 65 anos, é mais velha do que ele, Julius (cujo nome já indica essa dose de juventude).

O homem é estrangeiro, finlandês, e inicialmente apenas representa uma ajuda para Maria carregar as malas; ele próprio teve sua bagagem extraviada e perdeu a reserva do hotel. Nada mais natural, portanto, que dividam um táxi – e, como retribuição à cortesia feita, Maria lhe oferecerá um quarto de hóspedes. A companhia do desconhecido é um alento emergencial na sua vida, marcada pela dor da velhice e pelo constrangimento de ainda devanear, mesmo quando pensa que isso já não é permitido ou, pelo menos, não é conveniente: “Mas não é este amigo que eu procurava? ela pensou e foi tomada por um pressentimento” (p.76).

A disciplina da dor, neste conto, talvez atinja o seu momento mais representativo, mostrando o esforço para afugentar medos e mágoas, ou escondê-los por um instante, para permitir-se viver. Os impulsos são uma forma de esquecimento, uma espécie de confiança cega na entrega – ao destino? Mesmo que a personagem não acredite numa salvação, não consegue descartar a esperança, e por causa dela mantém a dor disciplinada, sob rédea curta: o sentimento está ali, palpitando na surdina, mas durante breves momentos ele não machuca. A personagem se reinventa de algum modo, busca uma escapada, mesmo que provisória: “Logo ele iria entender que essa mulher ostentando uma circunstância de poder queria depressa se desvencilhar desse poder para ser livre.” (p.81)

A liberdade é a ausência de sofrimento, não se confunde necessariamente com ânsia de aventura. E Maria Leonor, inclusive, não está buscando um amante; apenas um amigo, alguém que a resgate da solidão. À semelhança de Kori, do conto analisado anteriormente, sente-se mal no próprio corpo – mas ao mesmo tempo parece que está um passo além na superação deste problema porque acredita que se resignou, desistiu de lutar:

Ter que entrar novamente na humilhante engrenagem do rejuvenescimento, que mão-de-obra. Era alto demais o preço para escamotear a velhice, neutralizar essa velhice – até quando? Por favor, quero apenas assumir a minha idade, posso? Simplesmente depor as armas, coisa linda de se dizer. E fazer. O tempo venceu, acabou. (p.82)

Com toda a sua riqueza e o seu passado feliz, Maria Leonor remói a expectativa de um futuro que talvez signifique ficar “indefinidamente num estado miserável”. Os seus devaneios progridem, até ela admitir que busca um amigo capaz de ser seu cúmplice. O final da história é ambíguo, com a forte sugestão de que Julius tenha cumprido com a eutanásia, servindo a Maria alguma substância disfarçada no vinho, depois de receber seu exame de ressonância magnética. Ele diz que sua saúde está normal, e podem inclusive planejar uma viagem. Espalha catálogos de turismo, devaneando sobre cruzeiros pelo Mediterrâneo, e enquanto isso Maria se sente sonolenta, numa espécie de regresso à infância, quando lutava para não adormecer no colo da mãe.

As últimas palavras de Julius, no conto, transitam entre a piedade sincera e a dissimulação monstruosa (“Ele tomou-lhe a cabeça entre as mãos. Aproximou-se mais e fechou-lhe os olhos. – Eu te amo. Agora dorme.”), mas talvez a primeira opção seja a preferida do leitor, porque afinal o desejo de Maria foi realizado. O seu sono – definitivo ou não – é embalado pelas palavras amorosas que ela tanto queria. A dor, de toda maneira, acabou.

Aqui, vale a pena lembrar também “A chave”, do livro Antes do baile verde. Este é um dos poucos contos que concentra a velhice num personagem masculino, no seu ritmo em contraste com a esposa jovem: “Havia nela energia em excesso, ai! a exuberância dos animais jovens, cabelos demais, dentes demais, gestos demais, tudo em excesso. Eram agressivos até quando respiravam.” (p.88).

Em torno do tema da velhice, observamos ainda a esfera familiar, quando o idoso surge como personagem regulador de anseios, um tipo de fiscal ou instrutor que deve passar aos jovens a lição do controle, da medida emocional justa. Nesse âmbito, o conto “O Espartilho” já traz a ideia de rigor no próprio título, com a imagem de uma peça de vestuário opressora, ligada à moda feminina. Nesta história, a palavra também surge com tom metafórico, indicando a educação severa, imposta pela avó da protagonista: os preconceitos faziam com que todos os escândalos da família fossem silenciados, encerrados no álbum de retratos, e havia mesmo a lição de um tipo de higiene mental, que consistia em “não fazer nada por aqueles que despencam no abismo. Se despencou, paciência, a gente olha assim com o rabo do olho e segue em frente.” (p.33)

Este é um trecho esclarecedor da disciplina extrema no frear das emoções – e não por acaso ela é encontrada principalmente nas figuras femininas: a mulher-goiabada (da geração da mãe de Lygia, conforme a autora comenta em Durante aquele estranho chá) era aquela que permanecia firme em seus afazeres domésticos, apesar de todos os problemas que a atingiam. A manutenção do lar e o cuidado com a prole exigiam um espírito controlado – sem falar na vigilância social, sempre pronta a acusar comportamentos imprudentes. A avó desta história usava talco para “absorver uma possível umidade” do corpo – e já sabemos como em Lygia a água está associada à vida. A correnteza, o fluxo líquido, portanto, apontam para uma destemperança que os velhos tendem a não se permitir mais.

A educação disciplinada da neta, protagonista de “O espartilho”, envolvia o fingimento como ponto inevitável de controle das emoções: “Dizer o que as pessoas esperavam ouvir, fazer (ou fingir que fazia) o que as pessoas queriam que eu fizesse. Já nem sabia mais quando era sincera ou quando dissimulava, de tal modo me adaptava às conveniências.” (p.42)

Em meio ao comportamento obrigatório que uma menina bem educada deveria exibir na época, estava o recital de curtos poemas, quando havia visitas na casa (e a cena imediatamente nos remete a outra, idêntica, encontrada na infância da protagonista em “Papoulas sobre feltro negro”). O ritual envolvido na declamação e nas necessidades sociais de agradar às visitas leva-nos ao próximo conto de nossa análise. “Missa do galo (variações sobre o mesmo tema)” originalmente integrou uma antologia de 1977, organizada por Osman Lins, com a proposta de um exercício de retextualização efetuado a partir da história de Machado de Assis. É importante observar que a narrativa original já é, em si, um bom exemplo de contenção – tanto das personagens (que camuflam seus verdadeiros desejos sob uma conversa fútil) quanto do texto (repleto de sugestões e indícios, muito mais do que clarezas).

Lygia, como admiradora da obra machadiana, absorve a proposta deste autor tão disciplinado em suas dores, oblíquas e dissimuladas pela arte literária. É assim que ela põe uma personagem-observadora (a própria figura do leitor) para assistir incessantemente à cena da conversa noturna. Os gestos discretos escondem “um coração ardente”, sobretudo por parte de Conceição, essa mulher de “andar enjaulado”. O acréscimo de Lygia vem com a ideia de uma velhice vigilante, a idosa que escuta o amor dos jovens, atrapalhando: “tem sempre uma velha que finge que dorme enquanto os outros falam baixinho” (p.117).

A vigilância às vezes pode nem estar associada à velhice – mas encontra no âmbito familiar o seu exercício mais constante. É o caso de “Uma branca sombra pálida”, história trágica que traz personagens lidando com a dor da morte. Inicialmente, somos apresentados a uma mãe que vive o luto pelo suicídio da filha, mas ainda assim fiscaliza a sua angústia, não a transforma em espetáculo para ninguém.

O rigor em situações extremas, e associado à velhice, é também o tema do conto “A presença”. Nesta história, um homem jovem pede um apartamento num hotel “só de velhos”, mas sua insistência provoca desagrado no porteiro, que tenta convencê-lo de que ele não será bem-vindo: chegava para “lembrar (e com que veemência) o que todos já tinham perdido, beleza, amor. Um jovem com dentes, músculos e sexo” (p.134).

Se inicialmente este conto pode nos remeter a “Boa noite, Maria”, pela ideia do pacto entre velhos que se unem em prol de uma ajuda mútua ou “sistema” de vivência, depois percebemos que um resultado sinistro se impõe: o jovem é assassinado, num ato extremista que ilustra os perigos a que está sujeito aquele que simboliza a emoção, a fase da vida que ainda não se rendeu a uma opaca disciplina.

Finalmente, em “Senhor diretor”, encontramos uma personagem-síntese de toda esta seção de nosso ensaio. Maria Emília, senhora sexagenária, representa a decadência da velhice, sob um viés moralista. Maria Emília opõe claramente o obsceno ao disciplinado – privilegia uma ordem a que o corpo deve se submeter: a mesma ordem que ela tentava impor às alunas, no seu tempo de professora (o desejo de conter “aquela meninada que vinha espumejante como um rio, cobrindo tudo”).

A dor da velhice, desenvolvida através dos pensamentos de Maria Emília, ainda faz com que este conto dialogue com outro, “Você não acha que esfriou?”, presente no livro A noite escura e mais eu. Embora a personagem Kori exerça a própria sexualidade, seu desamparo diante do corpo é semelhante ao de Maria Emília, que está “adentrando a velhice” e permanece “intacta”. Ambas refletem sobre cirurgias plásticas (como também o faz a outra Maria, a rica senhora do conto “Boa noite, Maria”), e todas poderiam resumir suas sensações numa única frase: “Mas é proibido envelhecer?” (p.23)

De qualquer maneira, as proibições em torno da vida dessas mulheres já são muitas. Maria Emília é uma reguladora dos costumes, recebeu uma lição que carregou pela vida inteira e lhe tolheu a capacidade de ser espontânea: “Fechou depressa os braços contra o corpo para não roçar com o cotovelo no homem que se sentou na poltrona ao lado. Coma com as asas fechadas, mamãe me dizia. Viva com as asas fechadas, podia ter dito.” (p.32)

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho. Pode ser lido também aqui)