Viagem de salvação – parte 2

O que o Castello Aragonese – um ponto turístico em Taranto – teria a ver com O conde de Monte Cristo, romance famoso de Alexandre Dumas? Foi ali que o pai do escritor esteve preso, sofrendo torturas entre 1799 e 1800 (leia mais a respeito aqui). Dumas inspirou-se em histórias familiares: apesar de conhecer esse óbvio procedimento criativo, não deixei de me emocionar ao visitar o local.

Taranto

O Museu Arqueológico de Taranto também foi uma parada primorosa. Tantas peças e vestígios, tantas pistas dos que nos antecederam nesta experiência terrena… e o que podemos aprender com seus rituais, seus artifícios de vaidade e superstição, sua necessidade de embelezar o útil? Somos tão iguais, meu Deus – ou somos tão menores! Bem ali, à beira do mar jônico, eu podia ver uma réplica do Mara Hope, podia me sentir em outro forte, perto do meu litoral.

Museu

Museu Arqueológico de Taranto

Mar jônico

Chegamos a Martina Franca para o almoço. Seguimos uma moça vestida de gueixa através de ruas lindamente floridas, e logo percebemos (pelos insistentes cartazes) que a cidade se orgulhava de anunciar uma exposição do Picasso. Não podíamos deixar de conferir – claro! Mas pagar o equivalente a 25 reais para ver uma série de cerâmicas infantiloides foi uma infâmia, preciso dizer. Qualquer um que tenha estado na Oficina Francisco Brennand, em Recife, poderá fazer a comparação e saber do que falo:

Já em Alberobello, entramos em outro mundo. Os trulli, construções típicas, tiveram sobre o mim um verdadeiro poder de abdução. Tudo se apresentava muito místico (e aquele domingo era mesmo especial): havia mensagens nos textos, nas figuras, na música feita ao ar livre – e, principalmente, no artesanato precioso que encontrei na loja do sr.Vito. O Universo conspirava para consolar meu coração.

Os trulli em Alberobello

Significados dos símbolos pintados nos trulli

No dia seguinte: almoço em Cisternino, a cidade branca. Fingimos estar na Grécia, durante um breve passeio pelas ruas escaldantes. O próximo destino nos aguardava – Locorotondo. Depois dos originalíssimos trulli, eu esperava encontrar redondeza completa numa cidade que promete isso desde o nome. Mas o lugar é redondo apenas se visto a partir de um drone; no chão, lembrava muito Cisternino pela brancura grega, pelo tipo de arquitetura e flores profusas.

Cisternino

 

Locorotondo

Na próxima postagem, falarei sobre as últimas impressões da minha estada, com destaque para a maravilhosa Polignano a mare.

Viagem de salvação – parte 1

No princípio de julho (as pessoas mais íntimas souberam), sofri uma perda que me abriu buracos de ausência pela casa. Logo em seguida, viajei. A viagem estava marcada há meses, com trajeto organizado por uma amiga querida, que eu desejava muito reencontrar. Então embarquei – para não desfazer planos, nem mergulhar na dor de maneira perigosa – e, apesar da anestesia de muitos instantes, essa foi uma experiência formidável. Uma salvação e um reinício.

Talvez eu precise depois escrever (ou ao menos pensar melhor) sobre o poder das viagens, na sua relação com o tempo. Quinze dias se transformam em semanas. A distância interfere na concentração: não há como fugir do impacto das novidades que surgem. Paisagens, sons, sabores – tudo se apresenta como uma outra vida, uma realidade suspensa que nos distrai da própria identidade. Este é o mundo: perca-se nele (a viagem parecia me dizer). E eu me dissolvi, relaxada numa espécie de meditação infinita.

O roteiro, agora preciso recuperar, para que um pouco de racionalidade tente aprisionar as lembranças (embora inutilmente, já sei). Veneza foi o ponto de encontro, de onde parti com minha amiga Lívia e sua família, para a região da Puglia. Um carro alugado permitiu que conhecêssemos onze cidades – um conhecimento de flashes, de refeições típicas, igrejas, artesanatos, epifanias arquitetônicas. Mas eu não precisava de convívio naquelas localidades: a superfície me bastava. Todo salvamento necessita de rapidez, impetuosidade.

Em Bari, chegamos dentro de uma atmosfera que se preparava para receber o papa Francisco: não poderia haver melhor augúrio. Todo o charme dessa capital da Puglia – com o cenário marítimo familiar e a arquitetura em pedra que me lembrava tanto Jerusalém – foi um refrigério para a alma e os olhos. Já de volta à estrada, almoçamos em Altamura, e o restaurante Tre Archi imediatamente se revelou a mais completa experiência gastronômica que podíamos ter na Itália (ao final da viagem não tínhamos mudado de ideia).

Bari

Altamura – Catedral di Santa Maria Assunta

Em seguida, veio Matera… ah, Matera! Onde eu me senti dentro de uma paisagem de Bruegel: na sua torre de Babel, porém num tom mais pálido. Nessa que é a terceira mais antiga cidade do mundo, assistimos a concertos numa praça, enquanto a Bélgica eliminava o Brasil na copa. Mas foi a visita às igrejas rupestres o ponto máximo da estada. Na Madonna delle virtù (do século XII), para além da atmosfera mística dentro da frieza da pedra, uma série de esculturas do artista contemporâneo Girolamo Ciulla adensava o ambiente. Aqui também Mel Gibson rodou a sua Paixão de Cristo, e as cenas da última ceia e da lavagem dos pés foram filmadas especificamente dentro desta igreja…

“Stele con coccrodillo” e “Il velo d’oro”, de 1993.

“Demetra”, 2004.

“La venditrice di lumache”, 1999.

Entrada de igreja rupestre (no lado esquerdo da imagem)

Matera

Matera à noite

 

Matera vida boêmia

Matera e sua vida boêmia

 

Taranto foi a parada seguinte, com visita ao local em que ficou preso o pai de Alexandre Dumas – mas isso eu contarei na próxima postagem, porque um pouco de suspense, afinal, é necessário.

História das almas que se atrasam

Aconteceu no México. Certo homem contratou um grupo de nativos para fazer o transporte de mercadorias por umas montanhas, e no começo eles andaram bastante rápido, avançaram bem – até que pararam em determinado local para o descanso. O tempo foi passando, passando, o contratante já achava que estava na hora de retomar o trajeto; falou com um dos nativos, e ele disse que não era possível seguir ainda, precisavam aguardar mais um pouco. O homem se chateou e foi falar com o chefe dos transportadores. Mesma resposta: tinham de esperar. Mas por quê? perguntou o homem. Havia um prazo a cumprir; eles estavam ali parados, esperando o quê? Então o chefe lhe disse que, como tinham feito a travessia muito depressa, suas almas ficaram pelo caminho; agora eles deviam esperar que elas chegassem.

Essa história – presente em algum filme cujo nome escapa – eu ouvi do Gentil Barreira, no dia em que ele me convidou para integrar um projeto fotográfico.  A série nasceu de um desejo, ou de um tormento (o que tantas vezes quer dizer o mesmo). Consistia em capturar a relatividade da luz, numa experiência de que só a fotografia é capaz: uma figura podia aparecer em três lugares simultaneamente, dissolvida pelo movimento.

Ele me pediu para fotografar com objetos sertanejos. Primeiro, um remo encontrado no açude Castanhão, que em época de seca expõe seus tesouros escondidos pela água. Depois, uma folha do tamanho do meu rosto, ferruginosa e estranhamente parecida com um peixe. Eu devia dançar, fazer movimentos sob o flash contínuo, devia agitar o vestido, sim, girar a saia farfalhante, o cabelo num ritmo insano, criando uma nuvem negra no lugar da cara.

No cenário, uma velha lona de algodão, do tipo antigamente usado para cobrir a carga em caminhões. Estendida como uma parede flexível no estúdio, ela criava uma textura sépia – e, junto com os objetos sertanejos que iam compondo as cenas, tudo parecia de uma ancestralidade selvagem.

A série já continha várias imagens. De início, veio Lara. Segurando dois globos luminosos (na verdade, ratoeiras semelhantes a armadilhas para a pesca de lagosta, recheadas com minúsculas lâmpadas de led), ela posou, agitando-se de várias maneiras. Eu vi reflexos esverdeados, sensações de néon, bolas de fogo, manchas crispadas. Depois, Ângela – levando cipós originalmente usados para amarrar pés de tomate – surgiu como uma camponesa na colheita. O seu gesto suspenso era coisa fértil, sagrada, uma oferenda de trigo. Mas em seguida ela também se agitou, e vi um banho vertical de feixes dourados.

Marina, artista dos malabares, mostrou a mágica de ter relâmpagos nas mãos. Raios ríspidos foram as lâmpadas de led suspensas, virando força centrípeta, desenho de trajeto numa escrita chamejante: bambolês de luz. E Sara, dançarina, transformou seu vestido num jorro branco flutuante. Valéria – a fisiculturista – posou estática, mas usando na cabeça um crânio de boi. Era o seu corpo um minotauro-fêmea, versão que sequer Picasso imaginou.

E então, lá estava eu, usando uma saia de flamenco que se transmutava em asas; um xale tecido com reflexos. Feita no instante do salto, a fotografia me permitia levitar. O flou era o seu feitiço: criava cortinas, véus, ritmos nublados. A fluidez no resultado dava exatamente a sensação de que a lente capturava minha alma errante, que se atrasa –  porque o corpo é sempre mais ansioso, mais acelerado.

A velha história de que a fotografia sequestra a alma adquiria uma nova perspectiva. Porque capturava para nos devolver a ela. Se nosso olhar deseja parar um pouco, buscar a unidade em formas dissolvidas pelo gesto, é isso o que encontramos. E – embora talvez Gentil Barreira não tenha planejado – existe uma lição implícita em seu ensaio fotográfico. Ele faz ponderar sobre a pressa constante em que vivemos, o afã, a ansiedade, a correria de alcançar, mesmo que com o sacrifício de alguma parte – mesmo que não cheguemos inteiros.

Agora lembro Virginia Woolf, que em texto sobre abadias e catedrais (integrando o livro Cenas londrinas) comenta como tais construções são capazes de nos submeter à “pausa, expansão e liberação da pressa”. Pois também as fotografias – apesar de conterem arquitetura mais discreta – trazem um efeito parecido. E, se pensarmos bem, não é pouco quando uma arte, para além de qualquer traço estético ou espiritual, ensina a harmonia de estarmos quietos.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho)