Gatofilia

O tigre na casa – uma história cultural do gato, de Carl van Vechten, é daquelas obras que a gente adquire pelo simples impulso de felicidade. Eu a li numa edição argentina, e foi a chance de conhecer este autor, nascido em Iowa em 1880. Jornalista, crítico de música e teatro, van Vechten também foi fotógrafo, atingindo – numa época analógica, lembremos! – a impressionante autoria de 15 mil retratos, conservados hoje na Biblioteca do Congresso em Washington. Dentre os que estiveram sob o seu clique, famosos como F. Scott Fitzgerald, Marc Chagall, Truman Capote, Billie Holliday e Marlon Brando. Além disso, o escritor é tido como “uma das mais iconoclastas e influentes figuras da Nova York do início do século passado – ainda que poucos se lembrem disso”.

O tom bem-humorado passa por todo este volume, que nos conquista desde o início: “Cada vez que se toca no tema, e sendo moderado pode-se dizer que surge umas quarenta vezes ao dia, invariavelmente alguém diz: ‘Eu não gosto de gatos, prefiro os cães’. A observação dicotômica equivalente, igualmente popular, predominante e banal, seria algo como: ‘Não, não gosto de Dickens, prefiro Thackeray’. Tal como o escritor James Branch Cabell deixou assentado de uma vez para sempre, ‘ao pensamento filosófico essa afirmação parece tão sensata quanto recusar um convite para jogar sinuca com o argumento de que se é fanático por arenque’.”

Há muitos outros trechos deliciosos, que fui pinçando durante a leitura. Os felinos são referidos de diferentes modos: “a pantera do lar”, “a serpente com pelos”, “um ser de veludo”, “esfinge”… E, dentro das questões linguísticas, o autor assinala como especialmente aberrante o adjetivo “gatuno”, com seu sentido pejorativo. Na verdade, “só se poderia descrever como gatuna uma criatura graciosa e elegante, digna e reservada, o epítome da beleza, o encanto e o mistério do amor”. Os estudiosos de Estilística concordariam com essa colocação.

Dedicando-se a uma pesquisa sobre a presença felina em diversas áreas – ocultismo, folclore, leis, teatro, música, ficção –, van Vechten atinge o seu ápice quando trata de literatura e gatos. Dentre muitas curiosidades, o escritor nos faz saber que no “notável volume em que Cesare Lombroso intenta demonstrar que todos os gênios estão contaminados pela loucura, o italiano dirige seus dardos para Charles Baudelaire. Motivo: escreveu três poemas sobre gatos. Mas se os três poemas bastaram para enviar ao manicômio o autor de Les fleurs du mal, a madame Deshoulières, que escreveu mais de uma dúzia, a Heinrich Heine e a Joseph Victor von Scheffel teríamos que amarrar com camisa de força e aplicar-lhes a cura da água!”

Talvez Carl van Vechten nunca tenha ouvido falar de Nise da Silveira – senão, com que prazer citaria sua medicina, em tudo contrária à agressividade das propostas lombrosianas! A psiquiatra brasileira, além disso, enxergou de forma pioneira a importância dos animais como auxílio terapêutico. E, ultrapassando este aspecto “utilitário” de sua presença, Nise escreveu um livro precioso: Gatos, a emoção de lidar. Nele, por exemplo, ressalta o repúdio que Montaigne tinha, retirado no seu castelo a escrever ensaios (na companhia de sua gata), a “essa realeza imaginária que o homem atribui a si próprio sobre as outras criaturas”. E acrescenta: “Posição, portanto, oposta à de Descartes, nascido no fim do mesmo século em que nasceu Montaigne. Para Descartes, só o homem pensaria e vivenciaria sentimentos. A cruel visão cartesiana lisonjeia a arrogância do homem. Por isso predomina essa vaidade no homem até hoje.”

Bem antes que o termo especismo fosse cunhado, para se referir à discriminação praticada pelos humanos contra outras espécies, Nise da Silveira já – por sua inteligência e sensibilidade – lamentava que Montaigne fosse menos seguido que Descartes.

Sei que existem vários outros livros sobre gatos, e prever que encontrarei ainda diversos títulos sobre o assunto me faz antecipadamente feliz. De maneira geral, o tema – assim como os gatos em si – me põe sorridente. Por causa dessa descontração involuntária, inclusive, eu me tornei amiga de muita gente. Fala-se em gatos: isso me leva subitamente a conversas desenvoltas. Aliás, sempre perco a timidez se vejo alguém com um bicho; faço perguntas, papeio nem que seja por um minuto.

Entretanto, descobri que há quem se aproxime de gatos por motivo torpe. Mais de dez anos atrás, alguém que conheci – e que me procurou como se eu pudesse lhe passar “fórmulas” para prosperar na literatura – essa pessoa (que até hoje, pelo que sei, investe lamentavelmente no projeto de se tornar best seller) enfiou na cabeça que o êxito de algum modo estaria associado a gatos. “Com gatos em casa, você parece uma autêntica escritora”, disse, e depois de algum tempo – embora preferisse poodles –, a tal figura me informou por e-mail que havia adotado um casal felino. A mensagem tinha um tom triunfante, como quem põe nas entrelinhas: “Agora estou no páreo!”. Fiquei feliz pelos bichos, que já não corriam risco nas ruas, e também achei que eles poderiam servir como lição de paz, beleza e contemplação. Quanto ao sucesso que a ansiosa criatura esperava abocanhar, tive vontade de dizer: os gatos são deuses, mas às vezes – simplesmente – não querem fazer milagres.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho deste mês)

Para amar Manaus

Aproveitando o final das férias, fui à Amazônia – mas o sonho de conhecer o “Brasil profundo” teve de ser adiado por questões logísticas e éticas. Dentre estas últimas, ficou evidente que eu não poderia participar de um passeio que envolvesse pesca a piranhas, nado com botos ou focagem noturna de jacarés. Parece que a maioria dos turistas se diverte exotizando um bicho, sem pensar na intrusão que representa àquele habitat – por isso, foi um pouco difícil encontrar uma agência (fui a quatro) que simplesmente me oferecesse um trajeto de barco para ver o encontro das águas e voltar.

Quanto às questões logísticas, dormir na selva requer uma programação bem mais detalhada – e com mais tempo e dinheiro – do que previ. O ideal é sair direto do aeroporto para o traslado, sem ficar zanzando por Manaus. Entretanto, como eu não conhecia a cidade, achei interessante passear pelo centro histórico e também pela Ponta Negra, com uma esticada até o Museu do Seringal. Há coisas que lemos nos livros de História que só vão fazer sentido in locu – cada vez fico mais convicta.

Outros museus que visitei foram: o Palacete Imperial (que recomendo pela maior coleção numismática do Brasil) e o Museu Amazonense, infelizmente quase oco (a não ser por algumas peças indígenas e uma sala informativa sobre tecnologia lítica). Mas o melhor é o Musa, que fica no Jardim Botânico – um belo pretexto para ir até o lugar, embora a chuva forte do último dia tenha me contido. Assim, deixei de subir os 42 metros de torre para apreciar a floresta vista de cima. Mas, para ser bem sincera, ainda que eu tivesse joelhos fortes e tempo de sobra, talvez preferisse a hierarquia natural. As árvores e os pássaros devem permanecer no alto.

Dessa viagem, fica a lição – já tão repetida, porém nunca o bastante – de que a natureza é mesmo curativa. Passar dez minutos andando numa trilha, ou descansando diante de águas, ouvindo barulhos não-eletrônicos, equivale a uma noite de repouso. Ou talvez mais.

O lugar dos bichos

Da minha coluna Tudo é Narrativa, publicada no jornal Rascunho:

O LUGAR DOS BICHOS

 

          Nas narrativas clássicas – incluindo-se aí as religiosas – o animal sempre ocupou um lugar secundário, tendo a sua existência sob risco constante. O antropocentrismo que orienta nossas práticas moldou um olhar de superioridade em direção às demais espécies, e os relatos de sacrifícios jamais tiveram a intenção de provocar horror pela matança de bichos; ao contrário, passavam a mensagem de justeza, de uma busca de “equilíbrio” na ordem dos fatos: algumas vidas animais a menos serviam para aplacar a ira dos deuses, ou para expiar os pecados humanos.

      Lembro que, na infância, a leitura do Antigo Testamento me pareceu uma sequência de crimes impunes e abomináveis para com ovelhas, cordeiros e outras criaturas do tipo. E o absurdo era que, na mesma idade, eu recebia toda uma literatura voltada para a idealização de porquinhos, galináceos, formigas, ursos ou sapos. Não demorou para que eu compreendesse que o mundo rosado, construído pela ficção infantil, nada mais era que um artifício de fantasia que – em grande parte – tinha o propósito de distrair ou ensinar preceitos de moralidade ou comportamento. A estratégia do antropomorfismo revelava que também esses autores (por melhores que fossem suas intenções) rendiam-se ao impulso de medir toda experiência pelo critério da humanidade.

       Adolescente, tornei-me leitora de obras realistas ou regionais, sem encontrar alívio no tratamento dessa questão. Os animais vinham retratados como brutos, irracionais, incapazes de sentir ou até mesmo sofrer. Em vários relatos, eram mencionados somente como um alimento em fase ainda não degustável. Mesmo um caso de exceção, como o da famosa cachorra Baleia, confirma a regra geral. A riqueza psicológica que lhe é concedida tem o peso de um contraste que ressalta os estreitos limites em que as pessoas de Vidas secas circulam.

    Ermelinda Ferreira, num artigo que discute a metáfora animal como representação do outro na literatura, bem resumiu a tendência dominante: a maioria dos autores brasileiros tomou a decisão de desconsiderar os animais em termos ontológicos. Graciliano Ramos, por exemplo, em diversas passagens célebres de São Bernardo, de Infância e do já citado Vidas secas, valeu-se da metáfora animal somente para demonstrar a baixa escala alcançada pelo humano.

     Artistas contemporâneos talvez estejam mais dispostos a rever essa atitude – quando não por motivação ideológica precisa, por simples opção estética. Para ficarmos com o espaço sertanejo, basta o exame de algumas fotografias de Tiago Santana, que inclusive batizou um de seus livros como O chão de Graciliano (2006). Em diálogo com o cenário do escritor, o volume reúne imagens realizadas em viagens ao sertão de Alagoas e Pernambuco. A partir do próprio título evocador de telurismo, o fotógrafo (re)constrói signos agrestes e propõe um trânsito entre linguagens artísticas – interesse que se renova em sua recente publicação, O céu de Luiz (2014), dedicada a uma série de imagens inspiradas na obra de Luiz Gonzaga.

        N’O chão de Graciliano parece haver uma aproximação de técnicas entre as duas artes de grafar, seja com o verbo ou com a luz. Já se ressaltou, em analogia fisiológica, que Graciliano Ramos executa uma “composição por decomposição”. Tal aspecto é reprisado na fotografia de Tiago Santana, que também decompõe, mutila ou desfoca o indivíduo. Os cortes dos enquadramentos, os ângulos escolhidos, a própria escolha do preto e branco – tudo revela a intencionalidade de uma grande força sintética: exatamente como podemos classificar, pela precisão linguística, o projeto literário de Graciliano Ramos.

      Mas, ao contrário do romancista, o fotógrafo não parece considerar que a figura do animal traga um sinal de inferioridade. Se o autor, num trecho de Memórias do cárcere, escreve: “Homem das brenhas, afeito a ver caboclos sujos, famintos, humildes, quase bichos” (1954, p.112), podemos afirmar que essa gradação qualitativa – com o bicho ocupando o último nível – não ilustra o trabalho de Tiago Santana, onde vemos os animais elevados à individualidade, com vários indícios de valores positivos atrelados a eles.

      Em diversas imagens do artista cearense, temos estratégias de composição que dispõem a figura humana em relação presencial com os bichos, e estes surgem em realce ou com maior nitidez – em detrimento da pessoa, que costuma surgir com o rosto encoberto ou desfocado, ou ainda com menor peso visual devido a tratamentos de luz, contraste ou textura. Em certos arranjos, a fotografia constrói verdadeiros corpos híbridos: figuras se criam a partir de uma complementaridade física. O cão, o cavalo, o jumento e a cabra aparecem articulados ao cotidiano sertanejo de tal forma que o animal existe sobretudo por um componente afetivo de convivência.

      Logicamente, o espaço é também uma simbolização, uma construção subjetiva. Graciliano Ramos e Tiago Santana construíram temas sertanejos a partir de escolhas que, nos dois autores, indicam uma preferência pela apresentação do cenário como propício à interdependência entre homem e bicho. Entretanto, se na obra literária esse aspecto colabora para uma “historiografia da angústia”, no corpus fotográfico de Santana parece antes haver uma ponderação sobre a existência e a relação das outras espécies com o ser humano, sem que este assuma um local de superioridade.

        Firma-se a mensagem – infrequente, embora tão óbvia – de respeito pelos animais a partir da constatação de que eles são distintos de nós. É um equívoco considerá-los, por suas características específicas, inferiores às pessoas, ou, conforme o movimento oposto, idealizados enquanto seres de um tipo ingênuo. Qualquer base comparatista se destrói, ao pensarmos que, mudando-se a essência, muda-se a maneira de estar no mundo, e os critérios têm de ser particulares para cada caso. O que vale para um, deixa de se aplicar no lugar alheio.

      Esse exercício de reflexão talvez nos faça mais justos diante das criaturas que nos rodeiam. Cada uma delas, humana ou não, encontra-se mergulhada na própria narrativa vital. O respeito à trajetória e ao espaço do outro, antes de ser um ato de cidadania ou caridade, é simplesmente a noção de que somos todos limitados por alguma circunstância – e a finitude comum talvez seja a principal.

 

Tércia Montenegro