O futuro a flutuar

Depois que a pandemia passar, será que nos sentiremos seguros de viver sem máscaras? Ou o acessório vai se incorporar como uma necessidade incontornável? É verdade que, à medida que o tempo corre, a humanidade arranja novos meios ou necessidades para se cobrir ou amarrar. Houve uma época em que nosso corpo não se metia em tantas roupas, e andávamos com os pés, não levados por gaiolas móveis.

Então a partir de agora ficaremos abrigados em excesso: com o rosto debaixo de um pano, com o corpo dentro de um carro, sob um cinto de segurança, debaixo de roupas, e mais roupas, íntimas. Espero que, se o passo seguinte for a criação de cápsulas, a humanidade ao menos retorne à nudez. Que cada um, nu dentro de sua bolha, protegido e sequestrado por essa placenta eterna, possa experimentar o toque direto na própria pele.

Inventarão certamente dispositivos para manter o pudor: a bolha pode, por exemplo, tornar-se nublada em certas áreas, para os que a veem de fora, isto é, de outras bolhas. Alguns poderão escolher o fumê, estampas florais ou mesmo projeção de pinturas, na superfície bolhosa – e assim a diferença social continuará vigorando: todos nus e isolados, mas uns poucos em bolhas riquíssimas, talvez até disfarçadas em bolhas simples às vezes, para não despertar o ódio alheio. Sim, porque a humanidade ainda será igual, nos seus velhos sentimentos – e inimigos continuarão à espreita, testando zarabatanas, dardos ou alfinetes, para estragar a bolha vizinha, em casos extremos destruí-la, com consequências trágicas.

Não imagino bem os detalhes de uma rotina nesse tipo de envoltório, mas suponho que estudos, convívio, passeios, tudo se fará de modo remoto, com hologramas – para quem puder pagar, claro. Mas me intriga pensar nos casos em que o contato direto é indispensável, digamos, num exame médico, no ato sexual, no parto… Creio que haveria uma bolha específica para cada uma dessas ocasiões e, quando as pessoas combinassem de se encontrar nesse espaço comum, ainda assim não teriam acesso completo uma à outra. Um tipo de plasma, uma película viscosa cobriria o corpo de cada ser que entrasse na bolha coletiva, inclusive os bebês recém-vindos ao mundo. O sexo seria possível, mas apenas dentro desse preservativo integral. Filhos, para quem os quisesse, não seriam gerados por fecundação direta, mas sempre induzida – um processo in vitro, limpíssimo.

A boa consequência seria o fim dos estupros, porque uma pessoa que se sentisse abusada poderia, com um comando, espessar a película na região baixa, tornando-a inviolável. Fim das gravidezes não planejadas, das agressões domésticas (pois marido e esposa não sairiam de suas bolhas individuais, na maior parte do relacionamento)… Percebo como esse estilo de vida traria vantagens às mulheres, e isso é um péssimo sinal. Mostra certa ideia – de que só podemos estar em paz com a supressão da liberdade física – subjacente até num delírio futurista.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Indivíduos

A série Crown, exibida pela Netflix sobre a recente monarquia inglesa, é um exemplo bem didático para entendermos o alcance das constrições impostas por um jogo de aparências social. Grande parte do que mantém o poder frente a um público repousa no mistério: podemos pensar na velha fórmula de sucesso do suspense, do esquema folhetinesco que ainda hoje domina estruturas narrativas, sobretudo populares. Mas o mistério também é a base do poder numa sociedade. Seja em circunstâncias religiosas ou políticas, segredos não podem ser desvendados, sob pena de que o respeito acabe. Penso em como isso é frágil: a veneração, o ato de admirar o que não compreendemos.

Um comentário de François Lebrun, em capítulo da História da Vida Privada, v.3, recorda: “Enquanto instituição hierarquizada, a Igreja sempre desconfiou das manifestações de devoção pessoal consideradas excessivas e dos consequentes riscos de aventurismo espiritual; com muita frequência parecia satisfazer-se com uma religião coletiva cujo unanimismo aparente significava, talvez, mais uma cega conformidade que o envolvimento sincero e ponderado de cada fiel”. (p.73)

Via de regra, a promoção do sujeito é considerada uma ameaça para os sistemas, que preferem massificar uma multidão anônima e reduzi-la a mera engrenagem. Mesmo os modelos de liderança não podem ser inovadores, para não desestruturar os artifícios, o “teatro” que mantém hierarquias. Quando se olha a distância, parece grotesco que populações inteiras continuem com velhas ilusões absurdas, perpetuadas para garantir privilégios aos dominadores. Mas a explicação se encontra nesse mecanismo de homogeneidade: faça as pessoas sentirem que são parte de um bando, de um país, de uma ideia – e logo ninguém mais pensará por si, ou aqueles que o fizerem serão tão raros que permanecerão inofensivos.

A tentação da coletividade, que deve ser inclusive um traço da espécie humana (basta lembrar como as crianças são dependentes, e durante tanto tempo, se comparadas aos filhotes de outros animais), surge como isca essencial para a manutenção do status quo. Ainda que hoje exista uma sensação de que muitas vozes individuais se fazem ouvir, através do uso acessível dos meios comunicativos, uma simples observação mostra como essas pessoas, na verdade, agem como repetidores autômatos, repassando palavras (ou imagens) que vêm de outro lugar. São sujeitos assujeitados, conforme classificação da Análise do Discurso. São meras peças, que funcionam azeitadas por uma ideologia, uma crença indiscutível ou um algoritmo.

E por falar em algoritmo, a homogeneização virtual agora é uma tendência inegável.

Étienne de La Boétie, em pleno século XVI, comentou sobre a mais estranha das perversões do vínculo social, a “servidão voluntária” – e, em sua época, apontava o perigo dentro dos excessos de confiança ou até das gratidões legítimas, que poderiam gerar a tirania de um sobre outros. Mas o que dizer de nosso comportamento contemporâneo, quando nos tornamos dependentes de curtidas, servis diante de desconhecidos para quem “produzimos conteúdo”, inventamos artifícios, estratagemas para agradar ou atiçar com polêmicas?

Já não temos mais autonomia ou escolha própria; inventamos nosso Big Brother particular, damos satisfação de onde estamos, com quem, e em que estado de espírito (muitas vezes, forjado). Míchkin, protagonista de O idiota, de Dostoievski, em determinado instante diz: “Eu tenho tempo. O meu tempo é todo meu.” Quantos de nós realmente poderíamos afirmar isso?

Claro, lembremos que numa sociedade moderna – e não somente nela – há compromissos, obrigações, deveres. Mas para além das horas com trabalho, cuidado doméstico e/ou familiar, quanto tempo sobra? E o que você faz com esse tempo? Desperdiça, investigando a vida alheia ou expondo a própria, em redes sociais que são feitas para estimular vícios, gestos inúteis e repetitivos? Ou realmente utiliza a folga para o seu prazer – que pode, sim, estar no descanso e na solidão?

Se a pandemia de 2020-1 trouxe alguma lição, mínimo oásis em meio ao horror de mortes, talvez ela esteja em torno do autoconhecimento. E não me refiro a crescimentos espirituais: desconfio do aprendizado através de modelos punitivos, e acho que se aprende muito mais sobre Deus e o amor através da alegria. A mudança que várias pessoas perceberam em si mesmas, enquanto indivíduos, refere-se a algo tão imediato e inescapável, que paradoxalmente muitas vezes se ignora: o próprio corpo.

Houve relatos sobre insônias, dores de cabeça, suores. Gente se queixando de apatia ou, ao contrário, de uma adrenalina indomável, um apetite feroz. Todos os que são deixados a sós em algum momento oscilam, estranham-se, observam-se. Examinam os humores, escrevem diários, desnudam-se em frente a um espelho ou câmera. Na falta do mundo, o território interno torna-se convidativo, explorável.

O regresso ao corpo é uma primordial conquista da identidade. Conhecer minha composição, aprender sobre os músculos, os órgãos, o esqueleto é aprofundar na experiência humana. Da mesma forma com que uma planta, pela maneira como se exibe, comunica o que está sentindo, os meus olhos, unhas, gengivas indicam como estou realmente.

Fomos muito habituados a “consertar” o que nos desagrada. Cheiros, texturas, cores são alterados por razão cosmética, e na maioria das vezes por moda, para acompanhar o que todos fazem, ou o que a cultura impõe. Nesse ímpeto de manutenção da estética, a natureza é ignorada. E a natureza sempre nos fala de mudança, envelhecimento, ciclo sazonal: coisas tão distantes do nosso eu abstrato, que aprendemos a temê-las. Qualquer transformação parece uma perda ou ruína; queremos escondê-la.

Entretanto creio que, se observássemos o nosso organismo, cumprindo a rotina de nutrição, exercícios e sono, sem pensar que são obrigações incômodas que queremos reduzir ou cumprir logo – mas que de fato são o nosso modo de existência real –, teríamos uma nova perspectiva. Talvez deixássemos de nos ver como máquinas, para lembrar que somos sujeitos e, antes disso, animais. Nossa cognição, por mais desenvolvida que seja, não nos exime do trajeto de todo mamífero – vamos do ventre ao verme. O que deixamos no planeta pode ser grotesco ou sublime, mas esse legado não se confunde com nossa essência, nem a substitui. O nosso propósito não é produzir, como as máquinas fazem. Enquanto animais, nossa primeira finalidade é existir, habitar o mundo por um tempo. E, exatamente por sermos animais, não somos descartáveis nem substituíveis: cada ser é individual.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho, de fevereiro de 2021)

Experimentar

Em recente palestra transmitida de modo remoto, o linguista Ugo Volli trouxe reflexões a partir do conceito de experiência, a partir do qual se chega a uma específica técnica narrativa. Todas as considerações em torno do que poderia representar um modo de ultrapassar análises textualistas me interessaram muitíssimo – mas o espaço de debate adequado para isso não é uma página de jornal, de modo que levanto aqui somente um ponto, ligado à própria palavra, experimentar. Essa arte do fazer, conforme Michel de Certeau, não parece estabilizada numa definição social nem pode se confundir com as “coisas do mundo”.

Mantendo um sentido difuso tanto em conversações comuns quanto em abordagens científicas, a experiência aponta para uma zona pessoal inevitável. Como diz Ronald Laing no livro “The voice of experience”, de 1982, “a experiência não é um fato objetivo (…). O efeito que produz sobre nós um fato objetivo não pode ser um fato objetivo. Os fatos não sonham”. Porém, essa dimensão do sonho – que se mistura com as impressões individuais e intransferíveis de cada um(a) de nós – guarda certa previsibilidade, sem a qual o entendimento mútuo a respeito de qualquer situação seria inalcançável.

A margem do que é previsto pode ser traçada por hábitos sociais. Assim como um analisando (diz Volli), conforme uma velha anedota não despida de verdade, sonha de acordo com a orientação do seu psicanalista, vendo arquétipos se ele é junguiano, ou símbolos sexuais se é freudiano etc, também qualquer um(a) de nós ama, sente raiva, decide, tem fé etc, segundo um contexto cultural e linguístico: “A vida vivida não é menos cultural que as palavras escritas nos livros”.

Entretanto, a experiência pode servir de trampolim para um indivíduo aprender algo além do corriqueiro. Se observamos a construção etimológica dessa palavra, recebemos uma lição importante: em todas as línguas neolatinas, o vocábulo deriva de experiri, um verbo composto da preposição ex e da raiz indoeuropeia per(que não deve ser confundida com a preposição latina per, com o sentido de “através de”). Essa raiz, apontando para um significado de risco ou prova, aparece em palavras como pericolo, pirata, repertorio – lembra o estudioso italiano, e poderíamos acrescentar à lista de exemplos pernicioso, permissão, perícia, quem sabe inclusive perjúrio e perdão. Em tempos de pandemia, passamos a considerar perdigotos também como um risco terrível, embora a origem dessa palavra não se aplique ao mesmo caso…

De todo esse passeio filológico, resta a ideia de que experimentar confunde-se com a noção de colocar-se à prova, para eventualmente adquirir um conhecimento. Portanto, experiente é quem de algum modo enfrentou desafios, superou antagonistas – sejam eles outras pessoas ou pressões na forma de costumes, crenças, preconceitos. O aprendizado adquirido desta forma tão prática não pode ser transferido e pertence, de fato, a cada indivíduo que o conquista.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)