Formas de dançar

“Formas de dançar” faz parte de uma série fotoperformática mais ampla, que discute a situação da mulher em várias circunstâncias, com o seu corpo-alvo de tantas violências sociais. Durante a quarentena provocada pelo coronavírus em Fortaleza, este trabalho – produzido em 2 de abril de 2020 – fez com que eu, na solidão de minha casa, pudesse me conectar com a dor e a história silenciosa de muitas outras mulheres pelo mundo.

A partir de hoje estas imagens participam da exposição virtual Arte em tempos de COVID-19, promovida pelo Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, em seu instagram.

 

O espaço profundo

A alegria de hoje: saiu a publicação, na revista Temática, da pesquisa de Larissa Favacho e Mylena Braga, alunas brilhantes que tive o prazer de orientar! Vamos ler sobre astrofotografia científica de espaço profundo? Basta clicar em https://periodicos.ufpb.br/…/in…/tematica/article/view/51703 para ter acesso ao pdf. 🙃

Só coronavírus?

“Mas será possível que só se fala nesse coronavírus?”, ouço um indignado sujeito resmungar para a esposa, enquanto ambos andam, sem máscaras, pelo supermercado. Sim, senhor: estamos numa fase monotemática; para onde nos viramos, há informes, comentários, textos, vídeos, memes feitos sobre a pandemia ou por causa dela. Mas na verdade abordar esta doença levanta camadas infinitas por dentro da casca dos fatos. Dispara – de modo mais ou menos evidente – debates sobre política e economia (óbvio), mas também sobre arte, espiritualidade, esporte, saúde mental, práticas pedagógicas, urbanismo, ecologia, bem-estar, família…Mesmo quando não se discutem claramente esses assuntos, as mudanças levam a uma reflexão.

O estudante que um mês e meio atrás se distraía com o celular durante uma aula, por exemplo, talvez esteja se dando conta de que faz muita diferença a sala dentro da escola. A tela do smartphone de repente não lhe abre o mundo; ao contrário, limita-o – e é possível que sinta uma perturbação importante, que levará a uma descoberta: não se ministra aula apenas com voz e conteúdo; a cabeça flutuante do professor no vídeo cansa, porque na realidade um bom profissional dá aula com o corpo inteiro, engaja-se com gestos, movimentos, posturas perdidas no instante em que o magistério vira essa janelinha aberta por uma câmera.

Outros insights podem acontecer em relação a afetos, convivências, modos de se comunicar, aspectos da própria aparência, prioridades. Muitos começam a questionar a lógica das ambições como uma estratégia libertária. A maioria de nós está enfrentando uma diáspora interna, apartando ritmos, expectativas, até formas de vida. Fortes mudanças ocorrem durante o gotejamento dos dias, num fluxo que às vezes parece se espessar, ficar mais violento com uma notícia: morreu uma pessoa querida, alguém próximo, que não era apenas um nome ou estatística. Sofremos.

Se alguém ainda vê a situação como um mero inconveniente, se apenas se aborrece ou revolta pela rotina alterada, devo dizer: é estranho. Estranho e muito grave. Vejo alguns que – por ignorância ou desvario – simplesmente seguem com as atividades no tom de sempre, e há pessoas que, no seu papel público, deixam de problematizar o coronavírus, minimizando, às vezes de maneira cínica, a catástrofe que a humanidade experimenta.

Por favor, não creiam que sou pessimista ou gosto de cultivar tristezas. Quem me conhece sabe – levo como slogan a frase de Buñuel, que dizia: Um dia sem gargalhar é um dia perdido. Mas mesmo com toda a leveza, sei reconhecer momentos sérios. As pessoas que estão seguindo com seus dias normalmente, ou fingindo fazer isso dentro de suas profissões e no contato social, podem se incluir no rol dos irresponsáveis. O vírus não é uma gripezinha. E a vida não continua igual, com uns ajustes aqui e ali, numa simples questão de adaptabilidade. Pensemos sobre tudo isso. É a hora!

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

O inconcebível

Hirosh

Foto: Alfred Eisenstaedt/Pix Inc./The LIFE Picture Collection/Getty Images

“Pensem nas crianças mudas telepáticas”: lembro como a voz de Ney Matogrosso me ensinou, mais de três décadas atrás, os versos de Vinicius de Moraes. E como eu pensei nessas figuras tristes, feridas por um pavor inexplicável. Imaginei me deslocar pelo cenário devastado, o Japão no silêncio radioativo. Muito tempo depois, com a explosão em Fukushima, voltei a experimentar a mesma paralisia de horror.

Mas tive muitos outros motivos, por diversos países e fatos. Se eu lia sobre as guerras mundiais, especialmente a segunda, se via documentários com imagens de pessoas nos guetos, nos campos de concentração… eu me calava, em choque. Se pesquisava sobre a caça às bruxas medieval, se encontrava ilustrações dos autos-de-fé, idem. Se me informava sobre Sarajevo, sobre Ruanda – ou a história dos armênios, dos russos. A escravidão no Brasil. O muro de Berlim. Terremotos. O tsunami engolindo cidades. Furacões e tornados, tempestades arrastando casas. Incêndio nas florestas portuguesas, pessoas morrendo dentro de seus carros, enquanto fugiam. Fogo na Austrália, na Amazônia. As cinzas de Pompeia. O Vietnã. Brumadinho.

Ainda prendo a respiração, se encontro notícias sobre refugiados, exilados ou órfãos. Se penso nas meninas sírias que encontrei a caminho de Bruxelas. Se me lembro dos desvalidos, dos mutilados, das crianças traumatizadas por fome, tiros, violência na família. Emudeço pelas mulheres apedrejadas na sharia, pelas chinesas com pés de lótus, pelas garotas circuncisadas na África, por Mendieta, Marielle e tantas outras, anônimas, torturadas. Por todas as mulheres que já foram silenciadas.

O fôlego me escapa, se penso nos perseguidos de Franco, nas vítimas do terrível Pol Pot – e em todos os ancestrais imolados em sacrifícios, santos ou civis. O que houve na Sibéria. Nos hospícios. Nas velhas escolas, com palmatórias e castigos. Tudo isso me aterroriza.

E também sufoco um grito, se volto o meu olhar interno para os animais, aves, cães e gatos desvairados pelos fogos de artifício do último réveillon: esse crime aconteceu em Fortaleza, em tantas cidades brasileiras. Se penso nos zoológicos e testes laboratoriais, nas fazendas de abate. Na poluição do plástico nos oceanos. Se recordo o desalento dos meus alunos e a minha própria revolta inútil, com a grotesca política nacional.

Agora, vivemos mais um inconcebível: um vírus em turnê de contaminação pelo globo. A lista do horror me chama, pede que a preencha ainda mais, antes de incluir essa doença contemporânea – mas creio que por enquanto basta. Ela já me serve para recordar que o silêncio dentro de casa, no isolamento, tem o valor de uma prece. Que pode ser direcionada a todas as épocas, talvez ao mundo inteiro. Quem sabe?

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

 

A dor das coisas

anão de jardim

Continuando a nossa análise da contística de Lygia Fagundes Telles, tarefa a que agora nos dedicamos neste espaço, veremos hoje o livro A noite escura e mais eu. Nele, o conto “Anão de jardim” entra na atmosfera simbólica ou fantástica pela perspectiva narrativa de um ser feito de pedra. O “anão filosofante”, observador da vida hipócrita dos humanos, leva-nos a refletir – afinal, os objetos também sentem a dor da ofensa e da repulsa? Sentem. Mas não poderiam ser mais contidos ao lidar com isso, condenados que estão à fixidez (e, se todo gesto pode ser visto como um tipo de extravasamento, os objetos, ou não-seres, são os mais disciplinados no controle da dor).

O anão observa o “triunfo da impunidade”, como um “discípulo-espectador” – de Deus e da própria escritora. Acompanha as maldades das pessoas, que tentam disfarçar seus atos mas os escancaram, quando pensam que não estão à vista de alguém:

Pois é, os adultos. A saltitante Hortênsia matou (devagar) o Professor com doses (mínimas) de arsênico dissolvido no chá-mate e não era melhor a chantagista Marieta que vestia as roupas da patroa quando ela viajava e dava beijos estalados no focinho do Miguel para depois aplicar-lhe os maiores pontapés quando não via ninguém por perto. (p.187)

O anão de jardim, como um simples artigo de decoração, é vazio por dentro, em termos de materialidade – mas possui uma alma, essa consciência de que seu físico não é tudo e pode mesmo ser destruído pelos empregados que vêm, tempos depois, demolir a casa abandonada:

A não ser um ou outro inseto (formiga) que se aventura por esta fresta, não há nada aqui dentro e contudo ouço o coração pulsante repetir e repetir EU SOU. Fiquei como o homem que é prisioneiro de si mesmo no seu invólucro de carne, a diferença é que o homem pode se movimentar e eu estou fincado no lugar onde me depositaram e esqueceram. Até ser removido. Ou destruído, o que vai acontecer logo, os demolidores estão chegando à última parede da casa. (pp.192-3)

Mesmo com a destruição, algo de sua identidade restará (ou ele implora que reste, porque também cultiva uma espécie de fé: os objetos também podem acreditar em Deus?): “(…) eu sei do seu desencanto diante deste mundo que ficou ruim demais e ainda assim estou pedindo, quero lutar, me dê um corpo! Imploro o inferno do corpo (e o gozo) que inferno maior eu conheci aqui empedrado.” (p.200)

A imobilidade da pedra surge como o ápice do autocontrole, que se confunde com a inatividade – ou mesmo inexistência –, e é interessante perceber que neste instante em que a disciplina da dor poderia ser mais uma vez promovida como qualidade, o que ocorre é exatamente o contrário. O empedrado implora pelo corpo, o “inferno do corpo” carnal, que é perecível e sujeito a diversos sofrimentos – mas é também a única via para a experiência do gozo. A alma, somente, não é capaz de fornecer uma vida completa, com todas as disparidades das emoções:

Não tenho medo, não tenho o menor medo e essa é outra diferença importante entre um anão de pedra e um homem, a carne é que sofre o temor e tremor mas meu corpo é insensível, sensível é esta habitante que se chama alma. Falei em alma, seria um simples feixe de memórias? Memórias desordenadas, obscuras. Tudo assim esfumado como um sonho entremeado de fantasmas, seria isso? Não sei, sei apenas que esta alma vai continuar não mais neste corpo rachado mas em algum outro corpo que Deus vai me destinar, Ele sabe. (p.194)

Kobold (esse é o nome que o anão recebe de seu proprietário, o professor de música que acaba assassinado pela jovem esposa infiel) suporta em seu físico de pedra a degradação do tempo. O passar dos anos transforma a realidade, traz morte e decrepitude, abandono para a casa que já está prestes a ser demolida. O anão observa os danos que sua pedra vai sofrendo – e, apesar da dureza do material de que é feito, ele parece compartilhar da aniquilação que atinge seu proprietário. Na data em que o professor de música recebe sua dose letal, o anão também começa a se deteriorar gravemente:

Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, está te matando! Minha indignação foi tão violenta que senti nessa hora que alguma coisa em mim estava se rompendo, foi excessivo o esforço que fiz para me movimentar. Ele continuou imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois levantou-se com dificuldade, chegou a se apoiar no violoncelo que quase tombou num gemido, Blom!…Vai chover, Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se cambaleando em direção à casa eu tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A chuva se anunciou num raio que varou o teto do caramanchão. Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e acabou por golpear a pedra? Não sei mas sei que foi nessa noite que se abriu esta rachadura sem sangue e sem dor. Então as formigas foram subindo pelo meu corpo e vieram (em fila indiana) me examinar. Entraram pela fresta, bisbilhotaram o avesso da pedra e depois saíram obedecendo à mesma formação, além de disciplinada formiga é curiosa e essa curiosidade é que a faz eterna. (pp.195-6)

Merece destaque, no trecho anterior, a imagem das formigas, que são tradicionalmente associadas a um comportamento de organização e persistência. Em outro conto que mais adiante analisaremos, “As formigas”, também existe a curiosa associação entre este inseto e um anão – que, se na outra história não é feito de pedra, assemelha-se a Kobold por estar morto e existir apenas na forma de esqueleto: ossos, que são a parte pétrea, afinal, do nosso corpo. Quando, em “As formigas”, os insetos misteriosamente começam a montar o esqueleto do anão, arrastando seus ossos para a posição correta, temos não somente o assombro típico de um conto de terror (e que de fato aterroriza as duas personagens, imediatamente dispostas a fugir da casa mal assombrada), mas temos ainda a ideia do sistemático, da ordem implacável associada às formigas – que, no entanto, são também curiosas, e essa curiosidade (um tipo de emoção, sem dúvida) eterniza tanto quanto a disciplina.

Essa é a mensagem dúbia que ressoa, no “Anão de jardim”, significativamente posto como o conto de encerramento do livro A noite escura e mais eu. É necessário um método para controlar as emoções e assim conseguir atravessar a vida sem se estilhaçar pelo sofrimento: esta é a lição que todas as personagens das histórias anteriores aprendem, ou ilustram. Seja a dor da morte, do amor ou da decrepitude – tudo pode ser minimizado, sufocado ou escondido, em nome de um equilíbrio emocional que aqui chamamos de disciplina da dor.

O título do livro, nesse sentido, é representativo do distanciamento desejado entre o mundo – fonte de desamparo e solidão (como uma “noite escura” sugere) – e o indivíduo. A aditiva redundante “e mais eu” parece afastar os dois elementos, colocá-los em extremos, de modo a não se confundirem. É justamente essa a ideia de uma dor disciplinada: ela existe, como uma noite escura, inevitável – mas torna-se possível isolá-la, deixá-la num espaço separado, como uma emoção dentro de uma jaula.

Apesar desse tema predominante, “Anão de jardim” insere outra perspectiva, que desmonta o exagero da lição de frieza que os demais contos talvez ensaiem – embora, é claro, sem que nenhum personagem consiga a “perfeição” de anular os sentimentos (ao contrário, o efeito dessa luta interna é quase sempre trágico, pelo fracasso circunstancial em domar as próprias dores). O único protagonista que poderia alcançar este exemplo ideal de esvaziamento das paixões é Kobold, que, como objeto inanimado, teria uma existência sem recheios emotivos. Não obstante, nós o vemos como um “anão filosofante”, também dramático pelos pensamentos ou memórias que o atormentam – e, sobretudo – pela ausência de dores carnais, que ele deseja com todas as forças.

O último parágrafo deste conto é uma celebração do sofrimento, se assim se pode dizer. À medida que Kobold se sente despedaçar pelo funcionário que está demolindo a casa, cresce sua expectativa de renascer num corpo – ainda que seja num corpo venenoso (como o veneno que vitimou o professor de música?) de um escorpião. Ele não sente medo nem dor, porque é um simples anão de pedra, mas ainda assim é terrível e comovente a maneira como sua linguagem se atropela, vai se confundindo (humanizando-se?), enquanto seu físico desmorona. Vale a pena reler este fragmento, que tem o impacto de uma prece dolorosa – e despedaçada:

O escorpião já fugiu com seu dardo aceso, as pinças altas no alerta, escondeu-se. A tática. Um ser odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram no Zodíaco, lá está o Signo de Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa mínima forma eu aceito, quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho em qualquer tempo espaço o demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso que estais no céu com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outu/bro (p.202)

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho. Disponível também neste link)