A fugitiva

            Após quinze meses de confinamento doméstico, estou obcecada: só penso em viajar. Na verdade, vai demorar para que me arrisque a entrar num avião ou num ônibus interestadual, mesmo usando máscaras – porém isso não me impede de elaborar roteiros, saborear nomes de territórios longínquos e sentir um friozinho bom de excitação, enquanto imagino paisagens remotas. 

            A bem dizer, a paisagem não é tão essencial quanto o movimento – ou seja, a sensação de sair do lugar, buscando aventuras, torna-se a própria noção de viagem, muito mais do que o cenário. Talvez eu deva confessar que cultivo, desde sempre, um fascínio pelos extravios. Quando criança, um depósito de achados e perdidos virou a minha síntese dos destinos cruzados, das possibilidades infinitas que o acaso produz – e na mesma época caí de amores por Houdini, o artista das fugas, que se desvencilhava de todo esforço para mantê-lo estático. O fato de que ele tenha sido também fotógrafo, contorcionista e trapezista só acrescentava motivos para eu ficar apaixonada.

            Admiro os fugitivos, sejam eles criminosos ou vítimas. O gesto de escapar é uma expressão de liberdade, sob qualquer circunstância. Há muitíssimas ocasiões em que penso como posso fugir (de regras, padrões, hábitos ou pensamentos) e, embora não me sinta necessariamente oprimida por uma atividade, supor que posso abandoná-la é um salto criativo. De imediato, ganho novas perspectivas ou hipóteses.

            Quanto mais essa prática é estimulada, menos se vive no piloto automático. A rotina cria armadilhas, ideias ou ações que se esvaziam na insistência. Tudo isso tem como efeito a tristeza: fazer o que se deve, e não o que se quer realmente (e que às vezes nem conseguimos formular, de tão proibido que ficou o raciocínio livre) gera uma existência amorfa.

            Eu me permito perguntar: o que quero agora? – a cada assunto. Invento lacunas para interromper as reações automáticas, e esse é um modo de fugir. Desapareço dos lugares previsíveis, ainda que (na falta de uma variedade geográfica) sejam lugares mentais. Claro que, por estar imersa num sistema social, sou diariamente coagida a executar gestos obrigatórios, considerados “comuns”, “normais” ou esperados. Mas não se enganem: por trás do meu tranquilo rosto de concordância, posso ter escapulido para espaços alternativos. Estarei pensando em truques de mágica, ilusionismo – ou, quem sabe, terei sumido por esferas fictícias, rumo a um refúgio temporal onde me considero, de maneira algo proustiana, uma permanente fugitiva.

            Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Kronski está ao lado

Por questão de coerência, a obra de Henry Miller é bem-humorada. O famoso autor da Crucificação encarnada não poderia ter escrito tantas cenas eróticas sem injetar-lhes diversão, comicidade até – pois, inspirado na vida, sabia que o sexo (quando bem feito) é festa física, um dos mais intensos modos de celebração sensorial. Mas o riso – de mistura com o sarcasmo e uma ironia finíssima – também perpassa muitos episódios assexuais em seus livros. Henry Miller tinha o dom de caracterizar personagens, destrinchá-los no caráter, revelando seus puros ossos banais. Vejam, por exemplo, como ele fala de certo médico:

“Era Kronski, o grande tipo vivaz, são, jovial, descuidado, despreocupado, que resolvia os problemas de todo mundo. Era capaz de falar durante horas… durante dias, se você tivesse ânimo para escutá-lo. Despertava falando, e em seguida submergia em argumentações rebuscadas, sempre sobre o destino do mundo, sobre sua natureza bioquímica, sua constituição astrofísica, sua configuração político-econômica. O mundo estava num estado desastroso; sabia isso porque sempre estava reunindo dados sobre a escassez de petróleo, ou fazendo investigações sobre a condição do Exército Soviético ou a condição dos nossos arsenais e fortificações. (…) Falava dos abastecimentos mundiais, como se estivesse dirigindo o mundo. Sabia mais de direito internacional que a autoridade mais famosa no tema. Não havia assunto sob o sol do qual não tivesse um conhecimento completo e exaustivo”.            

Parece familiar? A pessoa que lhe veio à mente pode exercer outra profissão, ou mesmo nenhuma, pode ter gênero diverso, outra aparência e idade – mas é um Kronski se arrota a primazia do conhecimento, a autoridade implacável. Como assinala Miller, “como era possível que o mundo seguisse avançando vacilante, dia após dia, sem o assessoramento do Dr. Kronski, era um mistério que nunca esclareceu. O Dr. Kronski nunca duvidava de sua análise das condições mundiais. Depressões, pânicos, inundações, revoluções, pragas, todos esses fenômenos se manifestavam simplesmente para corroborar seu juízo”.

Na internet há gente que sente necessidade de falar sobre qualquer assunto – e publicizar opiniões ou crenças com fatalismo. Parece que a atual vocação da mídia é virar espaço de lições – sem que necessariamente sejam professores os que usam postagens, tutoriais e outros serviços de comunicação. Expõem cada assunto, às vezes em tom de ameaça, impositivo (talvez inventem uma palmatória virtual?) ou sedutor.           

Mas não me engano com os artifícios: a maior parte do conteúdo está longe de fornecer aprendizado grátis. Há um interesse subjacente, vinculado a vendas, propagandas, captura de dados… E este aspecto não é o mais grave – afinal, parece justo que exista retorno financeiro de algum modo. O problema é quando a internet, no seu uso caseiro, impõe dicas ou vereditos. Alguém generaliza, cria regras, chega a resumos topicalizados sobre a Vida. Eis Kronski bem a nosso lado.

O que Henry Miller diria?

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Sexo e humor

            Já faz um tempo que me intriga a percepção do quanto sexo e humor costumam ser tratados como temas proibidos – se não interditados completamente, pelo menos vistos sob desconfiança. “Muito riso, pouco siso” é uma antiga frase castradora, tanto quanto outras, que impedem a menção ao erotismo, como se ele estivesse associado à vida não-civilizada.

            Seja porque os excluídos se irmanam, seja porque de fato existe uma ligação essencial entre os dois assuntos, não é raro que se veja num texto – ou num comportamento – a referência ao sexo e ao humor em doses equivalentes.

            Uma velha estratégia repressora costuma desvalorizar o que pretende suprimir, estabelecer hierarquias nas quais a atitude mais obediente a um determinado acordo social é considerada nobre. As ações desviantes, em contrapartida, são acusadas de erro, vistas como prejudiciais, de má qualidade. O riso sempre foi considerado perigoso, mesmo em épocas (ou lugares) de maior permissividade erótica – porque as lideranças se sentem ameaçadas. Se a pessoa que está no poder não for respeitada, muitas vezes temida, se gargalhadas puderem desmascarar sua óbvia humanidade e com isso levá-la ao desprestígio, toda uma ordem estabelecida deve sumir.

            É por isso que vemos, desde a época clássica, a comédia sendo considerada o produto menor da teatralidade grega. Se então ritos de fertilidade garantiam a exaltação do sexo – associado ao festivo Baco, com seu toque de sátira (vale lembrar a silhueta dos sátiros, figuras híbridas e extremamente devassas) – durante a Idade Média qualquer riso ou aspecto libidinoso virou tabu para a humanidade. Eis O nome da Rosa, ficção de Umberto Eco (mas ficção de um pesquisador!), que aventa a hipótese de como um livro perdido sobre a Comédia era o máximo da interdição para um clero medieval, que podia seguir com suas práticas sensuais (e talvez a culpa e as necessidades de esconderijo inclusive as temperassem), mas recusava terminantemente o prazer da brincadeira. Essa possibilidade é óbvia, se pensarmos que qualquer postura autoritária opera pela inibição, pelo constrangimento fiscalizador (dos subalternos, sobretudo): difícil imaginar uma situação obrigatória através do riso.

            Com o avançar dos séculos, as relações libidinais, tanto quanto as humorísticas, vão se mesclando num tipo de tentação carnal que jamais chega a se extinguir numa sociedade. Às vezes o relato de como determinadas pessoas sucumbiram à luxúria já serve como situação engraçada. Vejamos, por exemplo, um trecho de Roger Chartier, no volume três da História da vida privada:

“Em 13 de janeiro de 1668, [Samuel] Pepys se detém em seu livreiro: ‘Vi um livro francês que pretendia mandar traduzir para minha esposa, L’escholle des filles [Escola das moças, atribuído a Michel Millot e Jean l’Ange]; contudo, depois de dar uma espiada, constatei que era a obra mais licenciosa, mais impudica que existe, ainda que pior que La putana errante, de Aretino. Assim, tive vergonha de lê-lo e fui para casa’. Mas parece que a vergonha não perdura, pois em 8 de fevereiro Pepys volta ao livreiro: ‘Fiquei ali uma hora e comprei esse livro torpe, malicioso, L’escholle des filles. Escolhi um exemplar de encadernação bem comum, decidido a queimá-lo tão logo o leia, para que não faça parte da lista de meus livros nem possa desonrar minha biblioteca se vierem a encontrá-lo ali’. No dia seguinte, Pepys está impaciente para ler essa obra promissora: ‘Hoje de manhã no gabinete para trabalhar e também para ler um pouco L’escholle des filles. É uma obra muito licenciosa, porém não é errado um homem sério folheá-la a fim de aprender a conhecer a infâmia do mundo’.”

O desfecho desse processo de leitura, pode-se imaginar: antes da queima do livro, a volúpia inevitável.

            Recordo também A Ninfomania, publicado no século XVIII. Embora atribuída a médico, D.T. Bienville, a obra não escapa de subterfúgios moralistas, que acabam por se converter em passagens hilárias – pelo menos para um(a) leitor(a) da contemporaneidade…

            Mestra na mesclagem do cômico ao libertino, é Hilda Hilst, e aqui ressalto especialmente a peça teatral dentro do livro Contos de escárnio. O tom erudito com que a autora maneja a licenciosidade é perfeito para gerar uma paradoxal solenidade que se quebra com os apelos mais naturais, por assim dizer. A linguagem também nos remete a esse mesmo século fescenino, que citamos antes – época do marquês de Sade e dos clubes amorosos que fervilhavam na alta sociedade francesa.

Mas essa tendência graciosa não é absoluta na literatura erótica. A história de O., por exemplo, não faz de modo algum rir. Pauline Réage (pseudônimo da escritora Anne Cécile Desclos, também conhecida como Dominique Aury) conduziu um enredo de submissão e dor, com sua protagonista sendo muito mais alguém que sofre do que se diverte. O próprio Sade, cem anos antes, comportou-se literariamente dessa maneira; o termo sadismo já diz tudo, e talvez Donatien Alphonse François de Sade tenha sido o maior responsável por colocar a mulher numa posição de vítima, em arte.

Até hoje o que mais encontramos são filmes, livros, gibis e outras mídias que exploram a violência, inclusive a sexual, em torno da figura feminina. A quem interessa atualmente esse vínculo entre sexo e angústia – eis o que me pergunto. Entre carnavalizações de Bakhtin e perversões ao estilo de Bataille, continuo a buscar uma arte que saiba trabalhar com o prazer sem punibilidade.  

O mito da beleza, de Naomi Wolf, ajuda a esclarecer um pouco desse mecanismo controlador:

“O estilo sexual feminino dos anos sessenta foi abandonado na cultura popular porque o fato de o sexo para as mulheres poder ser daquela forma — alegre, sensual, brincalhão, sem violência ou vergonha, sem medo das consequências — destruiria completamente as instituições que já estavam por demais abaladas desde que as mulheres haviam alterado apenas seus papéis públicos. Na década em que as mulheres passaram a encarar a feminilidade de forma política, a cultura popular redefiniu o sexo terno e íntimo como algo entediante.”

Neste livro, a pesquisa da autora também evidencia como diversas propagandas associam sexo a violência, “normalizando” situações de estupro. A situação exibida pelos artigos culturais não é muito diferente. E, por mais que aleguemos que essas tendências das décadas de 1970 a 90 já foram superadas, ainda podemos aplicar pesquisas similares, que vão nos mostrar como produtos comerciais – e, por extensão, comportamentos – associam dor a prazer físico. O sexo facilmente é confundido com uma “situação extrema”, daí sua identificação ao perigo e à morte. Entretanto, se quisermos, podemos encontrar outro vínculo para o êxtase, para a descarga de endorfina que um orgasmo traz… Esse vínculo é a gargalhada.

O prazer descontrolado do riso equivale à explosão de sentidos no clímax sexual – e o relaxamento, a descontração subsequente vem de modo idêntico. Entretanto, como existem muitos tipos de humor (confiram Henri Bergson), é claro que à primeira vista não pensamos em associar galhofa, zombaria ou sarcasmo a uma situação lasciva. Muito pelo contrário, esses elementos parecem díspares, com o riso funcionando de modo inibidor, um balde d’água, no fogo apaixonado. Entretanto outros tipos de brincadeira, explorações íntimas risonhas, trocadilhos e mesmo curtas e divertidas teatralizações fazem parte dos melhores enlaces carnais. É a esse tipo de humor que me refiro, como o melhor acompanhante do sexo. Eu sinceramente acredito numa redenção do corpo pela alegria, embora essa conquista libertária seja o contrário do que o nosso sistema deseja. Afinal, é muito mais fácil vender milagres para quem ainda não descobriu que o bem-estar é simples – e grátis.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho deste mês de junho)