Literatura para pensar

No começo da juventude, quando comecei a comprar meus próprios livros, ocasionalmente fui atraída pelas estantes dos “mais vendidos” – sem saber ainda que o critério de mercado não dava qualquer garantia de qualidade, às vezes muito pelo contrário. Toda a ficção que adquiri nesses espaços fez com que me sentisse fraudada – mas na época eu não alcançava bem o motivo. Afinal, ali estavam as histórias, narradas com estratégias de suspense que não me deixavam largar o livro antes do final, como se diz. Entretanto, a sequência de ações, de fatos mais ou menos surpreendentes, não bastava para causar impacto. Quando eu terminava de ler, já havia esquecido o conteúdo; ele não reverberava nem um pouco em mim, não me fazia querer guardar o livro para depois recuperar um trecho, pensar a respeito.

Eu me atormentei por um tempo com essa espécie de incômodo: intimamente irritada com aquelas obras descartáveis, passei a evitá-las, mas de um modo quase secreto. Filha de professores que era, e desde sempre adoradora de bibliotecas, a ideia de abominar um livro me parecia herética.

Aos poucos, fui admitindo a verdade: havia, sim, muita publicação péssima. Previsível. Repetidora de fórmulas. E o que não corria esse risco era apenas um tipo de literatura que fui reconhecendo como filosófica.

Muitos autores de glória universal – Marcel Proust, Wisława Szymborska, Sylvia Plath, Clarice Lispector, Robert Musil, por exemplo – se encaixam nessa proposta. E também Witold Gombrowicz, que no seu Curso de filosofia em seis horas e quinze minutos demonstra como exerceu, de modo bem consciente, essa escolha ao longo de sua carreira.

Esse livrinho, conforme o prefácio de Francesco M. Cataluccio, nasceu de aulas que ajudaram “o escritor polonês a suportar os últimos meses de sua vida”. A ideia veio de Dominique de Roux, que percebera como a filosofia era um tema estimulante para Gombrowicz, conseguindo distraí-lo de sua doença. Assim, por sugestão do amigo, o Curso foi ministrado de 27 de abril a 25 de maio de 1969, para apenas dois alunos: o próprio Dominique de Roux e a esposa de Gombrowicz, Marie Rita Labrosse.

Como todo volume que reúne apontamentos ou anotações, o Curso tem irregularidades, repetições, trechos incompletos. Mas até isso contribui favoravelmente: parecemos ler como quem conversa, raciocina em voz alta – filosofa. Gombrowicz nos leva por uma história do pensamento que vai de Kant a Marx. Há passagens bem-humoradas (e nelas reconhecemos o autor de Cosmos, de Ferdydurke), como quando ele resume: “Kierkegaard era um pastor dinamarquês, grande admirador de Hegel. De repente, ele lhe declarou guerra e foi um dos momentos mais dramáticos da cultura.” Em outros momentos, torna-se sarcástico: “Os filósofos, menos Schopenhauer, parecem pessoas que, comodamente sentadas em suas poltronas, tratam a dor com um desprezo absolutamente olímpico, desprezo esse que desaparecerá no dia em que, indo ao dentista, gritarão: ai, ai, doutor.”

Mas as suas grandes críticas e reflexões circulam a obra de Sartre: “Declarou simplesmente e honestamente que apesar de ser impossível reconhecer a existência do outro, não existe outra maneira senão reconhecê-la como uma existência que salta aos olhos. Aí se desfaz dramaticamente toda a filosofia de Sartre, todas as suas possibilidades criativas, e este homem dotado de um gênio extraordinário torna-se um triste senhor que, no fundo, é obrigado a fazer uma filosofia de concessões. Seu pensamento torna-se um compromisso entre o marxismo e o existencialismo. E então todos os seus livros tornam-se a base de um sistema moral em que tudo vai servir para sustentar uma tese concebida anteriormente.”

Lembro agora que Gombrowicz numa entrevista certa vez afirmou que “o propósito da literatura não é resolver problemas, mas colocá-los”. Esse rumo – de levantar questões, muito mais do que ações – aponta para uma literatura do pensamento, que dialoga estreitamente com textos filosóficos que “não se acovardam”, como ele dizia. Nesse sentido, também está clara, por exemplo, a presença de Merleau-Ponty e de sua fenomenologia da percepção em Rituais, livro do holandês Cees Nooteboom. Vejamos alguns trechos:

“E sua mão que acariciara o primeiro seio, que fechara os olhos do primeiro morto, traíra sua memória, traíra esse primeiro seio e traíra a si mesma ao envelhecer, deformar-se, macular-se com as primeiras marcas escuras da idade, com as veias mais grossas, tornando-se uma mão de quarenta e cinco anos, poluída, deteriorada, experimentada, precoce mensageira da morte que consumira, tornara irreconhecível, impossível de se encontrar, a mão de outrora, mais fina, mais branca, hesitante – embora ele continuasse dizendo “minha mão” e assim fosse fazer até o dia em que uma mão futura, viva, a colocasse, inerte, sobre seu corpo, em forma de cruz sobre a outra mão gêmea.”

“(…) ele [o personagem Inni] continuaria experimentando uma certa irritação para com aqueles que exigem sempre respostas precisas, ou que pretendem possuí-las. O interessante era justamente o aspecto enigmático das coisas, e não convinha querer colocar tudo em ordem. Com esse tipo de comportamento, causava-se uma perda irreparável. Ele ainda ignorava que às vezes o mistério se torna mais denso com uma reflexão precisa e metódica.” Os grifos anteriores são meus, para realçar como é exatamente isso o que a reflexão filosófica faz.

Haveria ainda várias passagens, destes e de outros autores, que eu poderia trazer para mostrar, digamos, que a formulação do Ser-no-mundo (onde a pessoa e o mundo são mutuamente constitutivos) é central também para a arte literária. Mas vamos encerrar por aqui, esperando que estas palavras já encontrem eco. Em mim, elas são essenciais para o exercício da mente. Parafraseando o que os surrealistas diziam acerca da beleza e sua necessidade convulsiva, hoje eu percebo: a literatura, ou será filosófica, ou não será.

 

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho)

 

 

 

Transfigurar o lugar-comum

Trecho do livro A transfiguração do lugar-comum, em que Arthur C. Danto comenta a respeito do abridor de latas, que, “como uma forma inovadora, enriquece a realidade, embora no consenso geral não seja uma obra de arte”. Mas, como seria se assim fosse considerado? Eis a sua proposta, pseudotraduzida da Chronique des beaux-arts – para rir um pouco com filosofia:

“A nudez singular de sua extremidade curta, desagradável, em forma de lâmina, surpreendentemente sinistra, corporifica uma masculinidade agressiva, acentuada pelo contraste formal e simbólico com a frívola e diminuta hélice, que balança livremente sobre um eixo fixo subjugador, e representa a pura feminilidade fútil. Esses dois motivos são simbioticamente sustentados numa única e poderosa composição, não menos universal e promissora a despeito de suas dimensões mínimas e de sua matéria banal. Fosse ele feito de um material precioso, compatível com seu tamanho, como uma peça de ourivesaria, teria perdido o sentido, porque sua mensagem fala do masculino e do feminino como um denominador comum da condição humana. E fosse ele enorme (e é preciso admitir sua monumentalidade essencial), exageraria a banalidade cósmica de seu tema tornando-o heroico. Não, tamanho e substância juntos reforçam a imagem e a significação, um membro digno daquele círculo seleto de chef d’oeuvres instantâneos e insistentes definidos pelo São Jorge, de Donatello, e por Mademoiselle Pogany, de Brancusi.”

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Sontag e o silêncio

Nestes dias desconcentrados e difíceis, a leitura só poderia acontecer de forma fragmentária. Poemas ou ensaios seriam a opção. Como eu estava precisando racionalizar, deixei o gênero poético de lado e me agarrei com A vontade radical, da Susan Sontag. O ensaio “A estética do silêncio” satisfez de imediato, mas dando aquela sensação de atraso – porque, quando eu li O homem que dorme, do Perec, os romances de Vila-Matas sobre “a arte do não” e o próprio Baterbly, o escrivão, fiz inúmeros questionamentos sobre o tema. Sontag teria vindo no momento ideal, então. Mas mesmo agora, com a simples lembrança destas obras, aproveito muitíssimo as suas ponderações:

“A atitude verdadeiramente séria é a que encara a arte como um ‘meio’ para alguma coisa que talvez só possa ser atingida pelo abandono da arte. (…) Embora não seja mais uma confissão, a arte é mais do que nunca uma libertação, um exercício de ascetismo. Através dela o artista torna-se purificado – de si próprio e, por fim, de sua arte. (…) enquanto anteriormente o bem do artista era o domínio e o pleno desempenho de sua arte, agora o seu bem mais elevado é atingir o ponto onde tais metas de excelência tornam-se insignificantes para si, emocional e eticamente, ele fica mais satisfeito por estar em silêncio que por encontrar uma voz na arte. (…) O silêncio é o último gesto extraterreno do artista: através do silêncio ele se liberta do cativeiro servil face ao mundo, que aparece como patrão, cliente, consumidor, oponente, árbitro e desvirtuador de sua obra.” (pp.12-3)

“Uma decisão exemplar dessa espécie só pode ser efetuada após o artista ter demonstrado que possui gênio e tê-lo exercido com autoridade. Uma vez suplantados seus pares pelos padrões que reconhece, há apenas um caminho para seu orgulho. Pois ser vítima de ânsia de silêncio é ser, ainda num sentido adicional, superior a todos os demais. Isso sugere que o artista teve a sagacidade de levantar mais indagações que as outras pessoas, e que possui nervos mais fortes e padrões mais elevados de consciência.” (pp.13-4)

“De tudo o que é dito pode-se indagar: por quê? (Incluindo: por que se deveria dizer isso? E: por que eu deveria dizer alguma coisa, de qualquer modo?)

Além disso, falando-se em termos estritos, nada que é dito é verdadeiro. (Embora uma pessoa possa ser a verdade, nunca se pode dizê-lo.)

Todavia as coisas que são ditas podem às vezes ser úteis – é o que as pessoas geralmente querem significar quando enxergar alguma coisa dita como sendo verdadeira.” (pp.26-7)

“Um dos usos do silêncio: atestar a ausência ou a renúncia ao pensamento.” (p.27)

“(…) a obra de arte eficaz deixa o silêncio em seu rastro.” (p.31)

O amor descomplicado

O grande sacrifício da minha vida foi passar os últimos seis meses longe dos meus gatos. Eles me fizeram falta física e espiritualmente – algo que estava para além de qualquer ponderação racional. E agora, retornando à casa, eles me recebem com uma primeira reação de surpresa, mas que imediatamente se transforma em acolhida: alegria imediata, proximidade para o carinho, o estar-junto-direto, olhos apertados de prazer… Talvez o amor dos bichos seja o único descomplicado. Sem cobranças, amarguras, ressentimentos – e, apesar disso, eles se lembram do passado. O seu amor também é feito de memória (a complicação, portanto, não está aí). Mas o seu afeto se desapega de tudo o que é análise, para se concentrar na presença.

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Varda, única e múltipla

Que o cinema de Agnès Varda é feito de contrapontos e diálogos entre opostos, já se sabe – mas ainda assim a gente perde o fôlego quando encontra uma declaração tão lúcida como esta:

“Je n’ai aucune difficulté à admettre qu’on peut être soi et son double, soi et son contraire. On a une pensée et celle est combatue par une autre qui est aussi valable.” (do livro Agnès Varda: le cinéma et au-delà. org. de A.Féant, R. Hamery et E. Thouvenel)

A busca de coerência pode ser uma prisão, afinal.

Para amar Ponty

Se a significação só é possível a partir da percepção, a filosofia de Merleau-Ponty também só existe a partir de sua postura sensível e artística. Como não se apaixonar por um pensador que diz coisas assim?

“Já que a percepção mesma jamais é acabada, já que ela só nos dá um mundo a exprimir e a pensar através das perspectivas parciais que ele ultrapassa por todos os lados, já que sua inenarrável evidência não é das que possuímos e, enfim, já que o próprio mundo só se anuncia por sinais fulminantes como pode ser uma fala, a permissão de não ‘acabar’ não é necessariamente preferência dada ao indivíduo sobre o mundo, ao não significante sobre o significante, ela pode ser também o reconhecimento de uma maneira de comunicar que não passa pela evidência objetiva, de uma significação que não visa um objeto já dado, mas o constitui e o inaugura, e que não é prosaica porque desperta e reconvoca por inteiro nosso poder de exprimir e nosso poder de compreender.”

“O pintor é tão incapaz de ver seus quadros quanto o escritor de se ler. Essa telas pintadas, esses livros, têm com o horizonte e o fundo da própria vida deles uma semelhança demasiado imediata para que um e outro possam experimentar em todo o seu relevo o fenômeno da expressão. É preciso outros fluxos interiores para que a virtude das obras se manifeste suscitando nelas significações de que não eram capazes. Inclusive, é somente nelas que as significações são significações: para o escritor ou para o pintor, há apenas alusão de si a si, familiaridade com o ronronar pessoal.” (grifo meu)

“Na medida em que o pintor já pintou, e em que é de certa maneira mestre de si mesmo, o que lhe é dado com seu estilo não é um certo número de ideias ou tiques dos quais pode fazer o inventário, é um modo de formulação tão reconhecível para os outros e tão pouco visível para ele quanto sua silhueta ou seus gestos cotidianos.”

“(…) a percepção já estiliza.”

“Há significação quando submetemos os dados do mundo a uma ‘deformação coerente’. (…) O mundo percebido, e talvez mesmo o do pensamento, é feito de tal modo que nele não se pode colocar nada que logo não adquira sentido nos termos de uma linguagem da qual nos tornamos depositários, mas que é tanto tarefa quanto herança.”

“(…) cada fragmento do mundo (…) mostra um certo modo que ele tem de responder e de vibrar sob o ataque do olhar (…) e finalmente ensina, além dele mesmo, uma maneira geral de falar.”

“De que maneira o pintor ou o poeta seriam outra coisa senão seu encontro com o mundo? De que falariam? De que falaria inclusive a arte abstrata, senão de uma certa maneira de negar ou de recusar o mundo? A austeridade, a obsessão das superfícies ou das formas geométricas têm ainda um cheiro de vida, mesmo que seja uma vida envergonhada ou despreparada. A pintura reordena o mundo prosaico e produz, se quiserem, um holocausto de objetos, assim como a poesia faz arder a linguagem ordinária.”(grifo meu)

MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. Trechos entre as págs. 106 e 118)

Ler e ver

Há uns dois meses, anunciaram – falsamente – a estreia da A espuma dos dias nos cinemas de Fortaleza. Pensei que havia perdido as escassas sessões, quando na verdade elas sequer haviam começado. Procurei o filme em locadoras (também em vão) até que descobri que na verdade ele era inspirado num livro do Boris Vian. Como já havia lido poemas deste ótimo autor francês, não demorei a encomendar o tal romance. A espuma dos dias transcorre num clima surrealista, mas não no estilo flâneur de, por exemplo, Nadja, do André Breton. Embora os personagens sejam igualmente livres de censura, quanto aos absurdos do mundo que os rodeia, no livro de Vian tudo se torna divertido, sem que pareça automatismo. Vejam, por exemplo, esta passagem:

“Colin, de pé na esquina da praça, esperava Chloé. A praça era redonda e havia uma igreja, pombos, um jardim, bancos e, em frente, carros e ônibus no macadame. O sol também esperava Chloé, mas podia se divertir fazendo sombras, fazendo germinar sementes de feijão selvagem nos interstícios adequados, fazendo escancarar as janelas e envergonhando um poste de iluminação aceso em razão de inconsciência da parte de um lumifuncionário.

Colin enrolava a borda de suas luvas e preparava sua primeira frase. Esta se modificava mais e mais depressa à medida que a hora se aproximava. Ele não sabia o que fazer com Chloé. Talvez levá-la a um salão de chá, mas em geral a atmosfera ali é mais para deprimente, e as senhoras glutonas de quarenta anos comem sete doces de creme com o dedinho levantado – disso ele não gostava. (…) Não no deputódromo, ela não gostaria. Não nas corridas de bezerro, ela vai ficar com medo. Não no hospital Saint-Louis, é proibido. Não no museu do Louvre, está cheio de tarados atrás dos querubins assírios.” (pp.56-7)

Outras inúmeras partes engraçadíssimas alternam-se com momentos poéticos, a ponto de às vezes termos a sensação de ler uma espécie de fábula. Mas, como eu lia já pensando no filme que me aguardava depois, não podia evitar a todo instante o pensamento: “Como será que esta cena vai ser transposta?” Havia muitos desafios na troca de linguagem artística, e só por isso eu me sentia atraída para o cinema – além de saber que Audrey Tatou estava no papel de Chloé (o que vale por uma boa recomendação. Nunca vi filmes ruins que essa atriz tivesse feito). Hoje, finalmente, eu estava pronta para enfrentar um shopping, único lugar em que o filme era exibido. Aturei com bravura a atmosfera nociva do espaço – não só pelo mofo que começava a arder na garganta, assim que alguém entrava na sala de exibição: a loucura de consumo, passeios frenéticos e overdose alimentícia (que caracteriza, em linhas básicas, um shopping center) também me trouxe um grande mal-estar. Claro que parte disso pode ser atribuída ao desfecho da história de A espuma dos dias, que é tristíssimo. Se no livro ainda se aguenta o suicídio até de um minúsculo personagem, na tela isso seria cruel demais – motivo pelo qual o filme busca um desfecho de redenção, mas que afinal não tira o gosto da tragédia. Tristeza no enredo, entretanto, não significa um defeito; se o espectador não for melindrosamente sensível, consegue acompanhar bem as criatividades de cena, que o filme esbanja. A atmosfera opressiva de sua última parte corresponde à tônica que Boris Vian criou – e que deixa clara a redução do homem ao rato, na mensagem escancarada pelo existencialismo vicioso a que um dos personagens se entrega. Pensar, rir, deixar-se levar pelo fluxo da vida; afinal, não importa o rumo da correnteza, pois o que restará no fim é isso: a espuma dos dias.

→Bom para ler e ver, comprovando de que modo o pessimismo pode ser o nó de uma história graciosa e poética, sem prejudicá-la.