Um discurso teatralizante

Os dois romances de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica e Um copo de cólera, têm a predominância épica (narrativa) em sua classificação. Diferentemente do texto escrito para o teatro, nestas obras não existe o drama puro, “como um mecanismo que se move sozinho”. Entretanto, a mobilidade do gênero dramático pode admitir práticas numa nova situação literária. Um texto híbrido pode estabelecer uma insólita função para o trágico. A questão da memória, por exemplo, faz pensar sobre este aspecto.

A volta no tempo é característica essencialmente épica, visto que a ação dramática deve acontecer no presente. Enquanto nas obras teatrais as personagens se transformam em objeto, objetivo do drama, no gênero épico verifica-se a oposição sujeito-objeto: “a personagem que recorda se divide, olha para outra parte de si mesma” e estabelece tal dualidade, conforme Renata Pallottini.

Contudo, se em Lavoura Arcaica temos com frequência o uso da memória, isto pode não ser exclusivamente épico. Kathrin Rosenfeld, por exemplo, afirma que projeções cênicas do passado são “essencialmente monológicas e por isso de caráter lírico-épico (lírico, por serem expressão de estados íntimos; épico, por se distenderem através do tempo; ademais, o lírico, na sua estrutura de peça teatral, tem sempre cunho retardante, épico).”

A partir de reflexões nesse sentido, notamos o caráter misto dos livros de Raduan Nassar. Lavoura Arcaica e Um copo de cólera seriam preferencialmente incluídos no gênero épico, devido à presença do narrador que retrocede e avança, intervém e expande a narrativa em tempo e espaço. Porém, através dos diálogos (e sobretudo dos monólogos), encontramos nestes livros uma carga dramática que garante o seu discurso teatralizante. Embora não sejam peças teatrais de fato, que exigem o palco para completar-se cenicamente, as obras têm um valor de texto dramático, a partir das falas das personagens, das quais nascem manifestações de atitudes contrárias __ o conflito, a ação dramática, em suma.     

Ainda é Rosenfeld quem esclarece: “O que se chama, em sentido estilístico, de ‘dramático’, refere-se particularmente ao entrechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários, produzindo o conflito”.

Assim, embora existam divergências inegáveis entre as obras de Raduan Nassar (escritas para serem lidas, graças ao seu caráter discursivo) e uma peça de teatro, defendemos a presença dramática dentro de um todo épico, como ponto de partida para o nosso debate, neste ciclo de textos. Buscaremos o fio condutor de um discurso teatralizante em Lavoura Arcaica e Um copo de cólera.

Como a palavra drama (em grego, drama, ação) sugere, para delinearmos dramaticamente uma personagem “devemos ater-nos à esfera do comportamento, à psicologia extrospectiva e não introspectiva”. De fato, se comparamos os dois gêneros, o épico tem seu ponto forte na figura do narrador, o que não acontece no teatro. Neste, tudo se concentra na personagem, que atua em tempo real. No teatro, não há, comumente, o recurso de explicitar detalhes da trama através de um narrador. Daí que o lado introspectivo, psicológico, acaba sempre sendo mais bem explorado por romances. 

Tanto em Lavoura Arcaica como em Um copo de cólera, o conflito se estabelece de forma clara para as personagens, e em grande parte através da citada “psicologia extrospectiva”. É a partir do confronto que a ação dramática será delineada, com um conflito acontecendo de forma predominantemente cênica, cheia de apelos visuais.

Em Lavoura Arcaica, a potência teatral se instala em torno do confronto entre o personagem André e seu pai. Insurgindo-se contra a tradição e as regras ditadas pelo pai, o rapaz vive uma paixão incestuosa pela irmã e acaba por fugir de casa. Ele se afasta da tradição de sua família, dos tabus construídos ao longo de séculos pelo clã patriarcal, mas depois retorna __ e para quê? Simplesmente para reconhecer os hábitos de sempre, embora algo tenha se modificado: os atos tornaram-se irreversíveis e não podem ser perdoados.

A dubiedade de cada personagem transparece, principalmente no caso de André e Ana. O próprio nome de Ana sugere a ideia de movimento contrário, palavra que pode ser lida por dois lados. Ana aparece como a irmã sensual, capaz de executar uma dança dionisíaca, numa espécie de encontro familiar que em tudo lembra um antigo rito de fertilidade. Vale a pena citar a maior parte do trecho, que transmite uma vibrátil sensação de movimento pela simples leitura:

“(…) e ao som da flauta a roda começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos virilmente contra o chão, até que a flauta voava de repente, cortando encantada o bosque, correndo na floração do capim e varando os pastos, e a roda então vibrante acelerava o movimento circunscrevendo todo o círculo, e já não era mais a roda de um carro de boi, antes a roda grande de um moinho girando célere num sentido e ao toque da flauta que reapanhava desvoltando sobre o seu eixo, e os mais velhos que presenciavam, e mais as moças que aguardavam a sua vez, todos eles batiam palmas reforçando o novo ritmo, e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda (…) ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase um cântico, nas vozes dos mais velhos.” (LA, pp. 30-1)

O aspecto religioso funde-se ao libidinoso, com a dança. Da mesma forma, Ana também pode esconder sua sensualidade em devotas preces. Pedro comenta que, logo após a partida de André, a irmã se fechara na capela, num “piedoso mutismo”.

Ainda acerca da dança, encontramos neste episódio como que uma invocação dionisíaca para as ações dramáticas que virão, no desenrolar da história. Sabendo que a origem da tragédia é atribuída aos cultos a Dioniso, fica interessante compreender este ritual de oferendas de música, bebida e movimento como um preâmbulo para a tragicidade que vai ser construída.

No próximo texto de nossa série, continuaremos a desenvolver esta análise.

Tércia Montenegro (ensaio publicado no jornal Rascunho de fevereiro de 2022)

Cena do filme Lavoura Arcaica (2001), dirigido por Luiz Fernando Carvalho

Ecologia da presença

Tenho feito estudos sobre o teatro, refletindo sobre as mudanças que o isolamento social trouxe para este setor. Assim como outras artes do espetáculo, o teatro por princípio compartilha de um tempo-lugar com seu público – aspecto que se altera ferozmente através de exibições on line. Uma parte das investigações publiquei na coluna que mantenho no jornal curitibano Rascunho; é o meu texto para este espaço durante o mês de setembro: um(a) leitor(a) curioso(a) pode depois conferir no site. Agora, entretanto, gostaria de apenas roçar o tema, trazendo passagens do livro de Hans-Thiers Lehmann, “Teatro Pós-dramático” (Cosac Naify, 2007).

O primeiro trecho que ressalto surge quando o autor menciona um “nicho ecológico” instaurado pela via da percepção, “o campo de uma intersubjetividade que põe em jogo a interação entre os corpos, uma relação de encontro comum em uma situação social que constitui um outro ‘tempo’ entre sujeitos.” E logo adiante afirma: “tanto na atitude ética quanto no cerne da afetividade em geral, encontra-se a indisfarçável situação da ‘presença’ do outro”(p.366). Naturalmente, o(a) leitor(a) percebe que aqui se fala tanto de teatro quanto de vida.

De fato, por mais que louvemos as vantagens tecnológicas que nos aproximam uns dos outros e expandem possibilidades comunicativas, há um lado pernicioso aí. Por que precisamos mesmo fazer aquele curso extra? Será por uma real necessidade ou prazer? Ou ativamos o hábito compulsivo de agir sempre mais e mais, porque o mercado exige, ou um modismo obriga, ou ainda porque essa é uma forma de fugir (dos pensamentos, do vazio rotineiro, das horas livres)? Ser workaholic muitas vezes significa deixar de existir e passar a funcionar, meramente.

A esse respeito, Lehmann é incisivo: “Se os gestos da interrupção reflexiva são considerados como algo antiquado e dispensável em relação ao registro sem demora das informações, a perspicácia versada tecnologicamente ameaça se converter em ideologia, na apoteose do funcionamento cego” (p.390).

Estão em jogo questões éticas, teóricas e sobretudo psíquicas, nesses ambientes computadorizados impostos na quarentena. O efeito zap – que nos leva a mudar o foco de atenção desvairadamente, considerando um fragmento qualquer como unidade informativa (e assim ninguém mais contempla uma foto, por exemplo, ou lê um texto inteiro na internet) – constrói a ilusão de que estamos “ganhando tempo”. Entretanto, adquirimos um vício ansioso, ignorando o que permanece inalcançável por baixo dessa mimese eletrônica.

Embora eu esteja vendo espetáculos on line, dando aulas remotas e fazendo tudo o que ficou obrigatório por força das circunstâncias, não esqueço que são paliativos. Bom mesmo é mergulhar numa experiência lenta de teatro ou outro tipo de convívio – uma troca física que lembre: eis a presença natural. Uma ecologia arcaica, irrepetível.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

As enfurecidas

 

 

 

 

Dois recentes lançamentos da Companhia das Letras – A Fúria, de Silvina Ocampo, e Prólogo, ato e epílogo, biografia de Fernanda Montenegro escrita em colaboração com Marta Góes – deixaram-me com a sensação de que há muitos mais elos que distâncias, entre diferentes artistas e linguagens. Essas publicações trazem autoras irmanadas na explosão de energia criativa, enfurecidas porque jamais se põem conformadas com o trivial ou o medíocre.

O volume de contos da argentina instaura um ambiente de crueldades, algumas bem sutis, outras nem tanto. Uma sensação de solidão e desamparo, uma quase-loucura feérica anima estas histórias – já a partir da ousadia na perspectiva do primeiro texto, intitulado “A lebre dourada”. Pelo tom de ocultismo (mas também associável a outras artes de disfarce, como o próprio teatro), assinalo este trecho: “As inumeráveis transmigrações que sua alma tinha sofrido lhe ensinaram a se tornar invisível ou visível nos momentos indicados, para haver cumplicidade com Deus ou com alguns anjos intrépidos”.

Silvina Ocampo realiza, neste livro, uma equivalência literária do que Leonora Carrington fez na pintura. Essa artista de origem inglesa (embora depois naturalizada mexicana) deixou textos publicados – assim como Ocampo, antes de ingressar na literatura, atuou nas artes plásticas. Em La casa del miedo: memorias de abajo, “se rompem os mundos convencionais, para deixar sair uma matéria completamente inesperada”, comenta o filho de Carrington. Temos a mesma impressão diante de quadros seus, como Y entonces vimos a la hija del minotauro ou Quería ser pájaro, que parecem mostrar igualmente o enigma que Ocampo exibe com palavras.

Nas memórias de Fernanda Montenegro reencontramos o tom macabro e quase surreal de algumas histórias de família – como a da tia Vicenza, que costumava ir à Santa Casa de Misericórdia para visitar a morgue da instituição, “onde rezava pelos cadáveres de indigentes ali abandonados” e onde certa vez reconheceu o seu marido, alcoólatra, que ela havia abandonado em Minas Gerais. Sabendo-se então viúva, a tia pôde casar novamente.

A atmosfera íntima dos costumes, dos rituais domésticos e utensílios, joias, lembranças, que passam, inquestionados, pelas gerações, lembra o cenário sufocante de contos como “A sibila” e “Os objetos”, de Ocampo. O que na escritora se realiza em transição de foco, perspectiva alheia do narrar – sob o ponto de vista de uma criança ou um animal, por exemplo – no teatro acontece de modo ainda mais ostensivo. Como esclarece Montenegro, a profissão milenarmente foi alvo de hostilidades religiosas, que consideravam heresia alguém querer viver um destino que não fosse o seu.

Foi essa “arte de se propor como um Outro” que levou a atriz, então ainda bastante jovem, à ousadia de pedir para si um papel de mulher diabolicamente sedutora, “para experimentar um não eu”. E comenta: “(…) porque o teatro, no fundo, é isto que todos sabem: um jogo. Mesmo no ensaio de um grande drama, havia uma hora em que a gente se olhava e pensava: ‘Meu Deus, eu não sou nada disso, o que eu estou fazendo aqui?!’, e tudo parecia dolorosamente cômico. Existia um humor fulminante em nós.”

Há inúmeros momentos engraçados nos contos de Ocampo, também. O enfurecer passa pelo entusiasmo, tanto quanto pela raiva. Nesse sentido, preciso citar uma obra homônima ao livro da contista – mas agora um espetáculo de dança. Fúria, da companhia de dança Lia Rodrigues, abriu a recente XII Bienal Internacional de Dança do Ceará, no Theatro José de Alencar, e ali, a dramaturgia de Silvia Soter mostrou toda a potência possível.

Algumas cenas pareciam se passar em hospícios; bem no início, alguém a arrastar um corpo pelo chão nos lembrava como essa é uma imagem classicamente funesta. Os gestos repetitivos, os espasmos e convulsões falavam de tortura, de abusos e castigos, submissão e crueldade. Os bailarinos ora se organizavam no cortejo lento (parecendo, pelas cores e formatos, simular um movimento peristáltico), ora se juntavam em grupos, executando estranhos rituais, com diversos modos de rastejar e contorcer. O desnudar-se era violento: alguém tirava as roupas do outro como o se destripasse, e as próprias roupas tinham cor de mucosa.

“É a ponte com o imprevisto, o improvável, o absurdo que, muitas vezes, nos leva a renascer. No palco, atingir o impensável é fundamental”, diz Fernanda Montenegro, quase no final de suas memórias. E exatamente essa exasperação encontramos no espetáculo da companhia de dança Lia Rodrigues. Uma fúria contra tantos episódios que foram institucionalizando o crime na política brasileira. Contra os escândalos e as perseguições. As injustiças, as impunidades. A mentira e a celebração da estupidez.

Recordemos inclusive a capa da revista Quatro cinco um, que em sua edição de outubro passado trouxe Fernanda Montenegro posando como bruxa, em cima de uma pilha de livros. Diante dessas fogueiras que ameaçam a cultura ou o conhecimento, ouçamos a voz poderosa das artistas que não por acaso chegaram aos 90 anos com esplendor: Silvina e Fernanda nos falam de outro fogo, insubmisso, que não se pode apagar dentro de nós.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho, na edição de dezembro de 2019)

 

 

 

Cada uma de nós

As coisas precisam avançar. Aqui em Fortaleza, fico sabendo da pesquisa de atrizes como Elisa Porto, Maria Vitória e Paula Yemanjá, que ressaltam o valor das mulheres em muitas estéticas e profissões. Inclusive no âmbito político e militar, nossas ancestrais atuaram fortemente – e o orgulho de conhecer os detalhes se equipara ao desgosto de perceber o quanto demorou (e ainda demora) para que esse anonimato acabe, e as mulheres deixem de ser empurradas ao segundo plano da História.

Muitos de vocês já conhecem o trabalho de Regina Dalcastagné, que desde 2005 investiga o perfil médio do escritor brasileiro – e a estatística mostra que os autores na maioria são brancos (93,9%) e homens (72,7%). Pois essa tendência pode ser observada em diversas outras linguagens, se suspeitarmos que a arte promove, inevitavelmente, os privilégios de seu tempo.

Se tomarmos, por exemplo, o Teste de Bechdel, que indica o machismo em narrativas, encontraremos resultados preocupantes. A proposta foi inspirada por Alison Bechdel, que em 1985 produziu uma história em quadrinhos na qual uma personagem feminina sem nome diz que só assiste a um filme se ele satisfizer os seguintes requisitos: 1) Deve ter pelo menos duas mulheres. 2) Elas conversam uma com a outra. 3) Sobre alguma coisa que não seja um homem.

Uma reflexão atenta mostra que grande parte dos filmes, livros ou espetáculos teatrais – principalmente (por que será?) os de tendência cômica – não passa no teste. As mulheres são apresentadas de forma estereotipada e sem profundidade, como se os seus interesses se restringissem à vida amorosa ou familiar. E, caso se procurasse filtrar ainda mais (dentro da perspectiva do Teste de Bechdel) os temas sobre os quais as mulheres conversam em obras de ficção, o desastre seria completo: quantos exemplos sobrariam, se as personagens femininas devessem discutir sobre assuntos que não envolvem filhos, gestão doméstica ou preocupações com a aparência? Quantas obras trazem protagonistas interessadas em mercado de trabalho, política, esporte, filosofia, ciência, urbanismo?

O lugar das mulheres na arte, enquanto criadoras ou personagens, continua marginalizado: elas são vistas como figuras menores, de pouca profundidade, com mínima possibilidade de expansão. Continuam empurradas para a última fila, quando não são de fato ignoradas, engolidas pelo silêncio. Recordemos que há mais de 40 anos o artigo “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, de Laura Mulvey, foi publicado, criticando a representação convencional das mulheres – mas a maioria dos filmes prossegue com os mesmos vícios. Vícios propositais, conforme Angela McRobbie, que em artigo sobre pós-feminismo e cultura popular expõe como as conquistas sociais dos anos 1970 e 80 foram enfraquecidas a partir da perniciosa ilusão de que a igualdade está alcançada.

Felizmente, vêm surgindo muitas iniciativas para superar esse mecanismo de violência e desprezo (duas faces da moeda). O movimento Nós Propomos, por exemplo, aparece aqui no Brasil como uma extensão do projeto que nasceu na Argentina (Nosotras Proponemos). Os seus compromissos com práticas feministas no campo cultural, literário e intelectual estão disponíveis no site http://nosotrasproponemos.org.

Segundo Paula Parisot, o movimento começou “no dia 5 de novembro de 2015, quando a artista Graciela Sacco faleceu. Nesta ocasião várias artistas argentinas em suas páginas de Facebook recordaram não só a potência da obra de Graciela Sacco, mas também ‘as formas sutis – e nem tanto – com que o machismo na cena artística de Buenos Aires havia atuado, de distinto modo, contra ela, como artista e como pessoa’, como explica Andrea Giunta no seu livro Feminismo y Arte Latinoamericano – Historias de artistas que emanciparon el cuerpo (siglo XXI, 2018).”

Uma das propostas do grupo, por uma garantia legal de aborto seguro, demonstra – pela polêmica que produz – o quanto algumas pessoas não admitem que a mulher seja sequer dona de seu próprio corpo. Recentemente, Débora Diniz, professora e pesquisadora da UnB, chegou a sofrer ameaças e intimidações por um grupo de direita. Sua fala do início de agosto sobre a descriminalização do aborto, em audiência no STF, é recomendável para toda a humanidade. Igualmente essencial é o documentário Primavera das Mulheres, de 2017, produzido pela roteirista Antonia Pellegrino e pela diretora Isabel Nascimento Silva. Os muitos feminismos são necessários para garantir, pela presença plural, a igualdade de gênero.

Paralelamente a essas iniciativas que apontam para o futuro, as tendências de resgate do passado se multiplicam. O Coletivo Elsa von Freytag-Loringhoven busca provar como essa artista de vanguarda foi a verdadeira autora do famoso urinol que tanto revolucionou a arte – mas acabou roubada por Marcel Duchamp.

Nas mídias virtuais, uma série de postagens levanta outros nomes de mulheres na ciência que tiveram os seus trabalhos silenciados ou tomados por homens. No esporte, na política, em diversas áreas explodem situações similares – e em vários países a discussão sobre os papéis sociais do feminino e do masculino cresce. Num projeto de postagens no Facebook, a escritora Carola Saavedra vem levantando a importância de várias figuras: María Luisa Bombal, Ingeborg Bachmann, Leonora Carrington, Unica Zürn, Kati Horna, Remedios Varo, Elfriede Jelinek, Ana Mendieta, Sóror Juana Inés de la Cruz, Graciela Iturbide, Paula Modersohn-Becker e Hilma af Klint. A recente exposição Radical Women, na Pinacoteca de São Paulo, também reforça a qualidade da presença feminina na arte. As coisas estão, portanto, avançando.

Mas não é o suficiente. Basta olhar as estatísticas (de feminicídio e violência doméstica: sempre alta; de presença de mulheres em postura equitativa à dos homens, no espaço profissional: muito baixa). Ou basta que qualquer pessoa se indague se ainda hoje caem sobre ela interdições ou exigências motivadas simplesmente pelo fato de ela ser mulher. Esse termômetro é um bom indicador de desmascaramento. E revela, a longo prazo, verdades assombrosas sobre a educação que recebemos – inclusive de nossas mães e avós. Elas nos ensinaram a repudiar mulheres, tratá-las como rivais, concorrentes. Como se continuássemos a depender financeiramente de um homem, o tal “provedor do lar” que iria garantir nossa vida, e a dos descendentes. Em torno desse varão, o mundo girava. As outras mulheres eram ameaças.

É preciso agora um trabalho vigoroso na direção contrária. Se cada mulher olhar a outra com a delicadeza de uma identificação cúmplice ou com uma predisposição amigável, tudo já começa a melhorar. Se cada uma de nós se voltar para a amiga, irmã, vizinha, colega, aluna – com uma iniciativa de cuidado e afeto, com amizade protetora –, a transformação acontece. Como diz Antonia Pellegrino numa entrevista, “o processo de se tornar feminista é o de se refazer internamente”. Demolir crenças e medos, culpas e ódios: tudo isso é bem mais urgente do que se pensa.

Tércia Montenegro (texto para a coluna Tudo é Narrativa, do jornal curitibano Rascunho)

Foto: Coletivo Colher

Bater a porta

O convite de uma amiga surge agora como um novo caminho artístico, insinuando-se paralelamente aos meus outros tantos projetos. É uma ideia bruta ainda, mas que me instiga pelo trabalho coletivo, coisa rara de acontecer no ofício da escrita. Não sabemos quanto tempo levará, nem prevemos a forma ou o resultado deste impulso. De qualquer modo, o aprendizado – e o crescimento – acontecerá para nós. Já começou, aliás: pelas coincidências cósmicas, conheci o Projeto Nora, interligado com o que queremos. Histórias de mulheres. De pessoas que têm de se afirmar como tal – porque, pelo fato de serem mulheres, são vistas (pelos demais, às vezes por si mesmas) em primeiro lugar como mulheres e, só depois, talvez, como pessoas.

Este blog não é um espaço para grandes reflexões íntimas, mas assim mesmo arrisco alguns pontos necessários. Depois de morar 6 meses na Bélgica, eu percebi o quanto de machismo existe no pensamento brasileiro. Machismo nas palavras, no peso que têm termos como velhice, feiúra, gordura – se associados ao sexo feminino, em especial. Machismo na distribuição de lugares, que em “tradicionais” encontros familiares empurra as mulheres para a companhia umas das outras, onde (espera-se) que tratem apenas de assuntos domésticos ou cosméticos. Machismo nas brincadeiras sarcásticas que pretendem relativizar as qualidades de uma pessoa ou exibir suas fraquezas – sendo que, se essa pessoa fosse um homem, haveria a opção de guardar silêncio: a ideia de uma revanche violenta, ou do medo de uma reação intempestiva, considerada viril, justifica o respeito ao homem. Para mim, isso é pura covardia, e os covardes só perdem para os cruéis, no nível de baixeza.

Lendo sobre o Projeto Nora, eu me felicito mentalmente por ter batido a porta na cara de muita gente que mereceu. Desfiz amizades, injetei friezas e distâncias e, em alguns casos, continuo alerta a ponto de chamar a polícia se encontrar determinados sujeitos. Claro que preferia não ter passado por várias situações infames – mas tudo isso me ensinou a reconhecer os que elejo para andarem ao meu lado. Eles têm olhos limpos, riso ingênuo e nenhuma intenção de adestrar, tolher ou sufocar. Para alguém assim, inexistem portas aqui em casa: meu afeto circula livre, alegre.

Fishman

A arte é uma coisa híbrida. Respira, desdobra-se por vários ambientes. Metamorfoseia-se, troca de corpo, arrisca os limites. Instaura embates.

Um dos atores é fishman: tem corpo de homem, mas não foi sempre assim – e traz membranas entre os dedos, como a personagem de André Breton, Nadja. O surrealismo se anuncia nos toques mínimos: luzes, desencontros, (im)possibilidades. Ao mesmo tempo, o cenário é poético, impressionista como uma tela de Monet. E há as bonecas russas, símbolos ambíguos de uma gestação fálica.

O outro ator também mergulha os pés na água e – sabe-se – convulsiona por dentro, igualmente: é desdobrável, mutante como cada um de nós. Não existe ser, só existe estar sendo. Humano é todo esforço de palavra, todo gesto de elevação rumo a novos planetas, novas peles. Cada abraço vira peixe e desliza, fugidio. O que eu não capturo é o que me conquista – definitivamente.

  • Parabéns ao grupo Bagaceira de Teatro, por seus 15 anos em cena! Fishman é uma comemoração para todos nós. Quem ainda não viu, corra para o teatro do Dragão do Mar, às 20h – só até o próximo domingo!

Yuríssimo!!!

Parabéns ao querido Yuri Yamamoto, que ontem foi o vencedor do quadro “Como manda o figurino”, do programa televisivo Fantástico, com 69% dos votos do público. Multiartista ligado ao desenho, à moda, à literatura e, sobretudo, à dramaturgia, Yuri faz parte do grupo Bagaceira de teatro e é um daqueles amigos que, se orgulho matasse, eu estaria por um triz! Além de tudo (ou principalmente), Yuri é uma pessoa formidável, tão simples e sempre sorridente!

O trem no teatro

Aviso aos amigos que estão ou estarão em Sampa neste mês de março: começou a nova temporada de O trem das onze, espetáculo teatral dirigido por Lucas Sancho, com inspiração no meu livro de contos Linha Férrea. Agora com novo elenco, a peça fica em cartaz às quartas-feiras até 25/03, às 20h, no espaço Cia. do Pássaro.

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Maria do Caritó

Amigos,

Em meio a uma frenética semana de atrações culturais, com Palco Giratório e Festival de Cinema Francês, encontrem um tempinho para conferir esta peça, Maria do Caritó, com texto do querido e talentoso Newton Moreno. Cliquem no flyer abaixo para aumentá-lo:

Maria Caritó