Nós, que amamos Agatha

            Vibramos com a novidade: uma edição brasileira, pela Harper Collins, trouxe agora em 2022 a Autobiografia para os fãs da “rainha do crime”. Talvez inclusive esta obra seja decisiva para conquistar ainda mais leitores: embora a pesquisadora Janet Morgan já estivesse com Agatha Christie – uma biografia desde 2018 editada no Brasil (pela BestSeller), os livros têm sabor inteiramente distinto. Quem gosta de minúcias poderá ler ambos, para compará-los, e nesse caso recomenda-se começar pela investigação de Morgan. Aqui temos os fatos e cronologias bem organizados; descobrimos, por exemplo, como surgiu a ideia de Agatha se dedicar à literatura.

Assim como Mary Shelley gerando Frankenstein em resposta a um desafio, Agatha Christie também escreveu depois de ser provocada; a irmã Magde a instigou a produzir uma história de detetive, na época em que o trabalho num dispensário farmacêutico, durante a primeira guerra mundial, ficou monótono: “ela decidiu experimentar, adotando o que viraria sua prática-padrão: começar decidindo o crime e definindo um procedimento que o deixasse particularmente difícil de elucidar”. (p.115)

Antes disso, ela já havia abdicado dos sonhos de ser pianista ou cantora de ópera: “Tenho certeza de que nada pode ser mais destruidor na vida do que persistir em algo que sairá malfeito e de maneira medíocre” (p.81). Ao contrário de tanto discurso atual sobre persistência (a tal ponto que falar em talento virou tabu para o nosso tempo), a lucidez de Agatha assinala que, além do esforço, é preciso, sim, que exista um dom criador.

            Houve também muita escrita por vingança. Por exemplo, durante uma excursão que ficou conhecida como um “passeio pelo Império” e que durou dez meses, a autora amargou o temperamento da figura central da viagem, o major Belcher: “Belcher trazia à tona o pior das pessoas e da natureza, e o melhor na escrita de Agatha. O relato do passeio na autobiografia é fluente e divertido, mas, em termos de humor, não chega aos pés do diário mantido por ela, a sequência de cartas enviadas para a família e os dois grandes álbuns de fotografias e souvenirs que montou quando ela e Archie finalmente escaparam das garras de Belcher” (p.125). Ao longo do tempo, ela iria se inspirar em muitas figuras peculiares, com defeitos patéticos ou traços de personalidade detestáveis – e assim, o estilo sardônico de Agatha foi alimentado pelo seu grande espírito de observação. A sua ironia também deslizou pelo pastiche, com inúmeras cenas em que a autora ridiculariza fórmulas da literatura policial, chegando inclusive a fazer piadas à custa de seus “heróis”, como Hercule Poirot.

            São muitas as criaturas famosas de Agatha Christie: além de Poirot, Miss Marple ou Ariadne Oliver, seus principais detetives, podemos lembrar Parker Pyne (considerado pela própria autora “mais realista” que Poirot). Não esqueçamos o “misterioso Sr. Quin”, juntamente com o Sr. Satterhwaite, “um cavalheiro idoso que acredita ser simples espectador, mas, quando inspirado pelo Sr. Quin, consegue resolver problemas” (p.230). Miss Caroline Sheppard é outra das muitas mulheres perspicazes nos livros de Christie, alguém “cuja onisciência expressa de modo suave é tanto irritante quanto maravilhosa para o círculo de homens condescendentes ao seu redor” (p.231)

            Há quem aponte falhas nos romances policiais de Christie, sobretudo porque várias histórias atribuem peso factual à declaração dos personagens, sendo quase sempre por meio do testemunho deles que se chega a esclarecer uma trajetória criminal. Ora, na “vida real” as pessoas mentem, distorcem depoimentos por motivos psíquicos sutis ou por simples má-fé. Outro aspecto que talvez soe artificial é a estrutura sintética que os livros de Christie assumem ao fim do enredo, geralmente com uma reunião em que se explanam os detalhes do caso. Essa fórmula de fechamento, com uma apresentação de raciocínio e dedução, é clássica (basta lembrar os livros de Conan Doyle, que Christie tanto admirava); se pode soar um pouco pedante, ao menos reconheçamos o mérito da autora em disfarçar tal estratégia: a solução é alcançada com inúmeras variações, que quebram a monotonia entre um livro e outro – tarefa árdua para alguém que publicou mais de uma centena.

O estilo da escritora tornou-se inconfundível – “romance de forma simples, poucos personagens, capítulos curtos e sem frases longas e complicadas, com ênfase nos fatos e na mecânica das situações, dando considerável importância à psicologia. Os suspenses e as histórias de detetive de Agatha eram despretensiosos, em termos de estilo, mas intelectualmente interessantes.” (p.156)

Uma viagem para Bagdá que inspirou a trama d’O assassinato no expresso do Oriente, sua mais conhecida obra, serve, conforme Morgan, para ilustrar o processo criativo de Christie: “uma vida que corre nos trilhos convencionais, mas subitamente a leva para um território surpreendente e até assustador, uma forma ordeira e lógica de proceder, interrompida por vislumbres ocasionais da irracionalidade dos seres humanos e da aleatoriedade dos eventos.” (p.224)

            É esse impulso arrebatador do destino que se percebe na Autobiografia – e sua dicção, extremamente bem-humorada, certamente conquistará novos leitores. Agatha Christie se revela como alguém plurifacetado: uma aventureira incansável, eterna curiosa, disposta a inventar tramas complexas que tinham como primeira finalidade diverti-la. Assim ela comenta, sobre o percurso necessário para concluir a peça Testemunha de acusação: “(…) li enormes quantidades de julgamentos famosos, fiz perguntas a advogados, e de repente senti que estava me divertindo – aquele momento maravilhoso na escrita que geralmente não dura muito, mas nos empolga com uma espécie de vigor e nos arrasta como a onda ao nos impelir para a praia. ‘Isto é adorável. Estou conseguindo. Agora para onde sigo?’, pensamos.” (p.613)

            Um pouco antes, de modo mais amplo, ela comentava: “É uma sensação estranha, essa de sentir um livro crescendo dentro de nós, por talvez seis ou sete anos, sabendo que um dia iremos escrevê-lo, sabendo que ele não para de se formar esse tempo todo. Sim, já está todo dentro de nós – só falta que se destaque mais nitidamente. Todos os personagens estão ali, prontos, à espreita, prestes a entrar no palco quando escutarem suas deixas – e, de repente, é como se ouvíssemos uma ordem súbita e clara: ‘Agora!’. Esse ‘agora’ soa quando já estamos preparados para escrever o livro. acontece quando já sabemos tudo a respeito dele. É um verdadeiro milagre quando podemos escrevê-lo logo, quando agora é realmente agora!” (pp.592-3)

            Ao final de sua Autobiografia, Agatha Christie sintetiza: “Reli tudo o que escrevi e estou satisfeita. Fiz o que eu queria fazer. (…) Não fui limitada pelo tempo nem pelo espaço. Demorei-me onde quis, pulei para a frente e para trás, conforme meu desejo. Lembrei-me, suponho, do que queria me lembrar; há muitas coisas ridículas sem razão que fazem sentido. É assim que nós, criaturas humanas, somos feitos.” (p.631). Aos 75 anos, ela conclui o relato, escrevendo: “O que posso dizer aos 75? Graças a Deus por minha boa vida e por todo o amor que me foi dado”.

            Esse amor continua até hoje, Agatha.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, no jornal Rascunho de novembro de 2022)

Os que ficaram

“O antigo futuro”, novo romance de Luiz Ruffato, está prestes a ser lançado, pela editora Companhia das Letras. No começo de dezembro, os leitores poderão conhecer uma narrativa pungente, cheia de exílios e dores, que se irmana à experiência de tantos brasileiros. O título, em sua proposta circular, indica o reprise inevitável: carregamos nossos antepassados e, quase sempre, copiamos suas errâncias, seus desastres. O passado espreita cada personagem, como um “cachorro pronto a morder-lhe os calcanhares”.

A história, desenrolada à maneira de uma saga familiar – com os cruzamentos temporais, as associações de memória que indicam a destreza do autor –, remonta ao início do século XX, quando imigrantes italianos aportaram no Brasil: inevitável pressentir no tema uma herança dos próprios ancestrais de Ruffato. Na atualidade, a mesma esperança de uma sorte melhor expulsa tanta gente para sofrer em outra terra prometida, os Estados Unidos.

O ciclo dramático desses trabalhadores parece fiscalizado pela amargura, como se houvesse “uma espécie de interdição ao contentamento”. A prosa de Ruffato é melancólica e contundente – certeira pela estratégia de apresentar seus personagens por vias enumerativas, como neste exemplo à pág. 22: “Alex vivia há pouco mais de um ano em Somerville, numa ruazinha próxima à estação Sullivan Square do metrô, quarto a seiscentos dólares por mês, aparelho de ar condicionado e televisão de trinta e duas polegadas (…) e naquele inverno começara a trabalhar como ajudante de cozinha num restaurante mexicano em Malden, a treze dólares a hora e a trinta minutos de ônibus de casa”.

A pressão do capitalismo conforma as identidades – e a ironia do recurso caracterizador se revela pelo fato de que todas essas figuras do romance são pouquíssimo diferenciáveis. Seu destino é o da massa, confundido também por números impessoais. A descrição de posses indica somente a pobreza, a condição que se busca aplacar sob o orgulho de ostentar certos princípios, como a religiosidade ou o trabalho duro e honesto. Na perspectiva da classe operária, os acontecimentos do mundo e do país transcorrem como um pano de fundo que não chega a alterar sua fortuna, apesar dos momentos de entusiasmo. A ilusão logo chega, mostrando a necessidade de uma labuta interminável. 

Há momentos de profunda beleza na história – como quando Alex recorda a irmã dançando sobre uma “neve” feita de isopor. Entretanto, à maneira deste artifício cênico, que simula flocos de neve com material bem diverso, a felicidade dos personagens parece sustentada sob episódios frágeis. A dor, ao contrário, permanece compacta.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Um discurso teatralizante

Os dois romances de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica e Um copo de cólera, têm a predominância épica (narrativa) em sua classificação. Diferentemente do texto escrito para o teatro, nestas obras não existe o drama puro, “como um mecanismo que se move sozinho”. Entretanto, a mobilidade do gênero dramático pode admitir práticas numa nova situação literária. Um texto híbrido pode estabelecer uma insólita função para o trágico. A questão da memória, por exemplo, faz pensar sobre este aspecto.

A volta no tempo é característica essencialmente épica, visto que a ação dramática deve acontecer no presente. Enquanto nas obras teatrais as personagens se transformam em objeto, objetivo do drama, no gênero épico verifica-se a oposição sujeito-objeto: “a personagem que recorda se divide, olha para outra parte de si mesma” e estabelece tal dualidade, conforme Renata Pallottini.

Contudo, se em Lavoura Arcaica temos com frequência o uso da memória, isto pode não ser exclusivamente épico. Kathrin Rosenfeld, por exemplo, afirma que projeções cênicas do passado são “essencialmente monológicas e por isso de caráter lírico-épico (lírico, por serem expressão de estados íntimos; épico, por se distenderem através do tempo; ademais, o lírico, na sua estrutura de peça teatral, tem sempre cunho retardante, épico).”

A partir de reflexões nesse sentido, notamos o caráter misto dos livros de Raduan Nassar. Lavoura Arcaica e Um copo de cólera seriam preferencialmente incluídos no gênero épico, devido à presença do narrador que retrocede e avança, intervém e expande a narrativa em tempo e espaço. Porém, através dos diálogos (e sobretudo dos monólogos), encontramos nestes livros uma carga dramática que garante o seu discurso teatralizante. Embora não sejam peças teatrais de fato, que exigem o palco para completar-se cenicamente, as obras têm um valor de texto dramático, a partir das falas das personagens, das quais nascem manifestações de atitudes contrárias __ o conflito, a ação dramática, em suma.     

Ainda é Rosenfeld quem esclarece: “O que se chama, em sentido estilístico, de ‘dramático’, refere-se particularmente ao entrechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários, produzindo o conflito”.

Assim, embora existam divergências inegáveis entre as obras de Raduan Nassar (escritas para serem lidas, graças ao seu caráter discursivo) e uma peça de teatro, defendemos a presença dramática dentro de um todo épico, como ponto de partida para o nosso debate, neste ciclo de textos. Buscaremos o fio condutor de um discurso teatralizante em Lavoura Arcaica e Um copo de cólera.

Como a palavra drama (em grego, drama, ação) sugere, para delinearmos dramaticamente uma personagem “devemos ater-nos à esfera do comportamento, à psicologia extrospectiva e não introspectiva”. De fato, se comparamos os dois gêneros, o épico tem seu ponto forte na figura do narrador, o que não acontece no teatro. Neste, tudo se concentra na personagem, que atua em tempo real. No teatro, não há, comumente, o recurso de explicitar detalhes da trama através de um narrador. Daí que o lado introspectivo, psicológico, acaba sempre sendo mais bem explorado por romances. 

Tanto em Lavoura Arcaica como em Um copo de cólera, o conflito se estabelece de forma clara para as personagens, e em grande parte através da citada “psicologia extrospectiva”. É a partir do confronto que a ação dramática será delineada, com um conflito acontecendo de forma predominantemente cênica, cheia de apelos visuais.

Em Lavoura Arcaica, a potência teatral se instala em torno do confronto entre o personagem André e seu pai. Insurgindo-se contra a tradição e as regras ditadas pelo pai, o rapaz vive uma paixão incestuosa pela irmã e acaba por fugir de casa. Ele se afasta da tradição de sua família, dos tabus construídos ao longo de séculos pelo clã patriarcal, mas depois retorna __ e para quê? Simplesmente para reconhecer os hábitos de sempre, embora algo tenha se modificado: os atos tornaram-se irreversíveis e não podem ser perdoados.

A dubiedade de cada personagem transparece, principalmente no caso de André e Ana. O próprio nome de Ana sugere a ideia de movimento contrário, palavra que pode ser lida por dois lados. Ana aparece como a irmã sensual, capaz de executar uma dança dionisíaca, numa espécie de encontro familiar que em tudo lembra um antigo rito de fertilidade. Vale a pena citar a maior parte do trecho, que transmite uma vibrátil sensação de movimento pela simples leitura:

“(…) e ao som da flauta a roda começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos virilmente contra o chão, até que a flauta voava de repente, cortando encantada o bosque, correndo na floração do capim e varando os pastos, e a roda então vibrante acelerava o movimento circunscrevendo todo o círculo, e já não era mais a roda de um carro de boi, antes a roda grande de um moinho girando célere num sentido e ao toque da flauta que reapanhava desvoltando sobre o seu eixo, e os mais velhos que presenciavam, e mais as moças que aguardavam a sua vez, todos eles batiam palmas reforçando o novo ritmo, e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda (…) ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase um cântico, nas vozes dos mais velhos.” (LA, pp. 30-1)

O aspecto religioso funde-se ao libidinoso, com a dança. Da mesma forma, Ana também pode esconder sua sensualidade em devotas preces. Pedro comenta que, logo após a partida de André, a irmã se fechara na capela, num “piedoso mutismo”.

Ainda acerca da dança, encontramos neste episódio como que uma invocação dionisíaca para as ações dramáticas que virão, no desenrolar da história. Sabendo que a origem da tragédia é atribuída aos cultos a Dioniso, fica interessante compreender este ritual de oferendas de música, bebida e movimento como um preâmbulo para a tragicidade que vai ser construída.

No próximo texto de nossa série, continuaremos a desenvolver esta análise.

Tércia Montenegro (ensaio publicado no jornal Rascunho de fevereiro de 2022)

Cena do filme Lavoura Arcaica (2001), dirigido por Luiz Fernando Carvalho

Na paz e na guerra

A temporada de confinamento que enfrentamos, desde março deste ano, teve repercussões que ainda vão lançar raízes por longo tempo. Em minha escrita para o jornal curitibano Rascunho, inaugurei 2020 com uma série ensaística sobre Lygia Fagundes Telles, e esse projeto temático exigia persistência. Mas agora que o ciclo de textos se encerrou, eu me permito divagar por vários assuntos. E penso nas leituras que fiz durante a quarentena – sobretudo Guerra e Paz, obra que parecia esperar, paciente, a minha disponibilidade. Como diante de todo clássico, já suspeitava que as críticas não me tinham preparado o suficiente (tarefa impossível, aliás) para a aventura de mergulhar no texto. Porém, não imaginava que o livro de Tolstói fosse me cavar tantos abismos místicos, até anarquistas – que sei eu? –, no processo de leitura.

Sob o colossal trabalho do autor russo, fica clara não somente a extensa pesquisa histórica feita, mas também a necessidade de pôr questões filosóficas em pauta – e orquestrar tudo, saber em que hora, e com que personagem, certa deriva podia se desenvolver. A escrita em si, se para ele foi uma parte fácil, nem por isso se tornou veloz: fluir não significa correr. Em nenhum momento a narrativa perde compasso, e é magistral o tema implícito que, adotando esse ritmo, o autor injeta: o de que todas as histórias, todas as ações, são igualmente importantes… ou igualmente inúteis, conforme se enxergue.

A alternância que o enredo propõe, dedicando-se primeiro à vida frívola dos salões aristocráticos, e depois aos episódios das batalhas, poderia criar no(a) leitor(a) a expectativa de que estes últimos, sim, são o miolo do livro, a sua razão de ser (e inclusive o enaltecimento tradicional das guerras parece relegar a “paz” ou a vida cotidiana a um lugar mesquinho). Com a leitura, percebemos o equívoco: tudo é o miolo, tudo está no centro.

Não existe senão a vida cotidiana, e em cada batalha os personagens circulam, atordoados, do mesmo modo inconsciente como nos salões obedecem a rituais de polidez. Ninguém tem uma visão grandiosa de nada, porque a escala do indivíduo é sempre ínfima – e a tal glória de haver lutado numa guerra, no fundo, resume-se à pura sorte de ter escapado vivo (não por mérito, porque, na dança de um tiroteio, é apenas pela coreografia divina que um determinado soldado escapa de cair alvejado onde, um segundo antes, marcava o passo).

De forma equivalente, na sociedade, o jogo de interesses favorece uns, desmascara outros. Tudo é pequeno, mesquinho e passageiro; os soldados morrem inutilmente, para que depois os imperadores façam acordos – e em que a vida de Napoleão ou a do czar Alexandre pode ser mais valiosa do que a de outra pessoa qualquer? A única razão para essa hierarquia foi o juízo coletivo que a legitimou, santificou, exaltou uns pouquíssimos em detrimento de todos os demais.

Anotei no meu diário, em 20 de abril: fiquei profundamente impressionada com a cena em que o personagem Pierre encontra um idoso na estação de trem, ao fugir da esposa, sentindo-se indiferente ao próprio destino – se continuaria igual, ou se morreria ali sem um lamento. Ora, Tolstói escreveu Guerra e Paz aos 35 anos; com mais de 80, depois de seguir convicções que o levaram a doar grande parte de suas terras aos camponeses, perseguido judicialmente pela esposa (que tentava impedi-lo de doar o resto), ele foge do inferno familiar, tomando um trem – e morrendo numa das estações, em Astápovo.

É inevitável pensar que nessa cena do livro o personagem encontra o próprio autor, transfigurado no velho que ele seria 50 anos mais tarde – e os dois conversam. O personagem se sente irresistivelmente atraído pelo ancião, que sabe quem é Pierre, conhece a sua história e o aconselha. O movimento simula um encontro com o divino; se consideramos que há também uma Grande Narrativa por trás de nossas vidas, a possibilidade de um dia conversar com Deus é equivalente a essa, de um personagem encontrar-se com seu autor, numa espécie de mise en abîme diegética que nem Pirandello ousaria. Notemos: em Guerra e Paz o procedimento foi involuntário da parte de Tolstói, e em Seis personagens à procura do autor a metaestratégia ocorreu de modo bastante consciente…

Em outro capítulo, a cena de um debate entre Andrei Bolskónski e Pierre Bezukhov traz novas considerações à baila. Após sua conversão à maçonaria, este último sente-se santificado por ter ordenado, em suas terras, o fim do trabalho infantil, a construção de igrejas, hospitais, escolas e uma série de benefícios ao “próximo” – sem saber que sua sensação é ilusória, pois a corrupção administrativa de suas propriedades apenas finge desenvolver as melhorias, mas na verdade os camponeses seguirão explorados de qualquer maneira, talvez até mais que antes.

Andrei, por outro lado, não acredita que se possa “fazer o bem”, porque a própria interpretação do que é bom pode ser mera arrogância de quem acha que, devido a estudos que fez, por exemplo, conhece a Verdade. Como alguém presumiria o que é bom para uma pessoa, se não sabe sua realidade ou não ouve as demandas diretamente dela? Essa foi a perniciosa ideologia por trás de discursos colonialistas, populistas, salvacionistas ao longo dos séculos – e ainda hoje isso carrega polêmicas antropológicas ou culturais, dentre tantas. No fundo, ninguém faz nada senão por si mesmo – e um ato de caridade pretende muito mais aplacar a consciência do doador, ou construir dele certa imagem (pública, inclusive) de benéfico. A paz também se compra, assim como a opinião alheia.

Mas a postura de Andrei – que esteve a ponto de morrer numa batalha, e que antes disso desejava a “glória”, ou seja, vivia em função dos outros, para os outros – é de um radical egoísmo sábio. Ele decidiu viver só para si e, quando se dedica à família, sabe que continua no perímetro do seu eu, das coisas ou pessoas que lhe são caras e até, por assim dizer, ajudam a construir sua identidade. Os outros de fato, os desconhecidos, os anônimos, os figurantes que podem cruzar seu caminho, as pessoas por trás das estatísticas, de todo tipo de construção ou serviço, a humanidade em geral, essa massa distribuída ao longo dos séculos e países… isso não lhe interessa. Ou lhe interessa tanto quanto um cenário ao fundo de um espetáculo: é algo que existe ali, mas nunca em evidência.

Andrei – por sua experiência de quase-morte – entendeu como é responsável unicamente por si; ninguém lhe restituiria a vida ou a viveria em seu lugar. Portanto, cuidar dele mesmo é a sua missão grandiosa, o seu heroísmo. O que a sociedade elege para a fama, o sucesso em algum domínio (por exemplo, Napoleão), a Andrei se revelou como uma sombra que atrapalhava sua visão do céu, no momento da agonia, ferido na guerra. De que lhe importava se aquele homem a seu lado era um imperador, um tirano ou um sujeito vulgar? Andrei só se preocupava consigo, não fazia o mínimo esforço para reconhecer a personalidade tão aclamada que, ali, era apenas um incômodo.

Ao sobreviver, Andrei se transformou. Deixou de ter “uma vida a serviço de” e passou a ter “uma vida” – ponto. Sem se preocupar em justificar sua serventia, os atos que fizesse em prol da humanidade, os benefícios, a honra, a justiça. Todos esses valores se esvaziaram, saíram da casca das palavras e perderam o sentido. Assim como a vida alheia também perdeu o sentido, virou esse cenário distante que Andrei não se esforça mais por discernir ou compreender – sabe que isso agora não lhe diz respeito. Aliás, nada jamais diz respeito a uma pessoa a não ser ela própria: Andrei admite tal princípio com naturalidade e modéstia. Ele não é um monstro interessado em prejudicar os demais (como às vezes o egoísmo parece sugerir, embora o conceito de centrar-se no eu nada tenha, necessariamente, de inveja ou maldade). O seu lema poderia ser: viva e deixe viver. E deixar viver não é ajudar a viver; é largar o outro com a própria vida, fazê-lo responsabilizar-se por ela, porque essa é a situação inexorável de cada um no planeta.

O desenvolvimento posterior deste personagem, entretanto, mostra como uma condição filosófica é frágil, pode desmoronar facilmente. Depois de um tempo dedicado a si, voltado para a sua paz egoísta, Andrei se desestabiliza sob a influência de Pierre (que, no fundo, é um pobre imbecil manipulado, mas desconhece a própria realidade). Volta a participar de círculos sociais e políticos, ocupa sua vida com ações que não compreende nem questiona, simplesmente as repete porque é o que todo mundo faz, é o que esperam dele, o que de fato exigem. Sim, embora tudo pareça sutil e camuflado, é posto como obrigatório – se ele se recusa a caber no papel destinado, deve explicar-se, convencer, o que parece mais cansativo que a obediência. Caso se recuse sem dar explicações, será visto como um louco, um ser hostil ou no mínimo excêntrico, e vão isolá-lo, abandoná-lo… odiá-lo (por ter a coragem de fazer o que, inconscientemente, a maioria deseja mas não arrisca, e por destruir, ou arranhar ao menos, o escudo corporativo que sustenta a sociedade e inventa um sentido para a existência dos indivíduos, ao enfiá-los em papéis específicos).

É preciso uma disciplina imensa, para ser um dissidente. Mas não falo de quem abandona as regras de um grupo para seguir as de outro; alguém que se converte, por exemplo, a uma religião ou ideologia, não faz nada original. O dissidente é aquele que recusa (“I prefer not to”, como dizia o Bartebly de Melville), e para tal não precisa fazer anúncios, chamar a atenção para o espetáculo de sua negativa, como também não precisa arranjar adeptos, outras pessoas que o apoiem (isso já seria formar um grupo, cair em regras).

A recusa pode ser silenciosa, íntima. As atitudes de um dissidente podem soar distraídas, banais até, insignificantes: é quando alcançou o seu propósito. Porque, se a opinião social considera o opositor uma ameaça, não cessará de combatê-lo; porém, se vê em seus atos algo inofensivo, então vai deixá-lo em paz, com aquele tipo de gesto frustrado que os adultos adotam com crianças que não lhe parecem birrentas, mas ainda assim são teimosas. “Pois faça o que quiser!”, dizem, e não deixam de espiar ocasionalmente a criança, mas a vigilância relaxa.

Isso já representa a liberdade.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho de agosto, com leves adaptações. Pode ser lido aqui)

Metaforizar

Benjamin Moser, em sua recente biografia de Susan Sontag, indica – como um dos eixos obsessivos da trajetória desta pensadora – a permanente reflexão sobre a metáfora. Logo no início do livro, assinalo a seguinte passagem: “Para Sontag, a realidade – a coisa real, despida de metáfora – nunca foi de todo aceitável. Desde muito jovem, ela soube que a realidade era frustrantemente cruel, algo a ser evitado” (Companhia das Letras, 2019, p.22)

Não somente dois ensaios de Sontag, “Aids como metáfora” e “Doença como metáfora”, parecem confirmar a predileção da autora para se debruçar sobre o assunto. Nos seus volumes a respeito da arte fotográfica, Sobre fotografia e Diante da dor dos outros, ela reforça este aspecto: a fotografia não se confunde com a realidade. É sempre um processo representativo, metafórico – uma interpretação do mundo, jamais o mundo em si.

Em minhas aulas na Universidade Federal do Ceará, esse tipo de debate se instala de modo fácil, sobretudo nos estudos linguísticos e semióticos. A metaforização é um processo inevitável, porque a própria linguagem nos afasta do empírico, molda um simulacro, um substituto onde tantas vezes mergulha a maior parte da nossa vida, quando não a totalidade.

Podemos não fazer reflexões tão conscientes quanto as que Susan Sontag pôs em seus livros, mas para todos nós, humanos, metaforizar também se torna um procedimento crucial.

A ânsia pelo conforto simbólico nos faz rejeitar situações em que o corpo surge enquanto mero pedaço de carne, organicamente funcional, com seus ciclos, excreções, apetites etc. Criamos estratégias de erotização – transformação simbólica – para travestir nossos impulsos “animalescos”. Comer ou beber, por exemplo, passam a ser atos sociais, ritualísticos até. O sexo se reveste de sentimento amoroso (uma invenção cultural, alguns dizem), a procriação e a morte ganham interpretações sublimes ou religiosas (de novo, a cultura). Estipulamos pudores ao comportamento, escondemos o biológico de que somos feitos.

Acreditamos que a vida seria grotescamente insuportável, sem esses mecanismos de deriva.

Quase todos os seres humanos realizam transferências simbólicas (as exceções são conhecidas dos psicólogos); portanto, esse processo não é exclusivo das artes. Mas é claro que há uma grande diferença entre metáforas cotidianas, clichês desgastados que apenas reforçam hábitos mentais, e o tipo de golpe flamejante que encontramos na boa literatura, digamos.

Exatamente por ser inesperado, o gesto artístico nunca se reduz a imitações ou formulazinhas. Satisfaz – e depois escapa. Como a própria existência, aliás.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

 

 

UM HIPPIE TECNO

O músico e artista plástico David Byrne, no seu Diários de bicicleta (que foi uma viagem possível – e extremamente agradável – nesta quarentena), aborda inúmeros assuntos. Sob a proposta de compilar vivências em diversos países, através de turismo ou turnês, quando Byrne sempre encontra um modo de pedalar, seja em Manila ou Istambul, Salvador ou Berlim, o livro faz um percurso reflexivo variado. De questões urbanas e culturais a perspectivas históricas, artísticas e filosóficas, aprendemos a cada página. Eu poderia citar aqui muitos temas, mapeando os capítulos de Byrne – mas elejo um, em alerta sobretudo graças ao momento atual.

Ao tratar sobre a região do Vale do Silício, em São Francisco (EUA), o autor estabelece certo conceito à primeira vista estranho: o de um hippie tecno. Conforme sua percepção, os “jovens ponto-com” tinham, assim como a geração paz-e-amor, um interesse revolucionário em fazer algo que unisse todas as pessoas. “O livre-para-todos da blogosfera e a loucura total das coisas que as pessoas postam on line compartilham uma bela sensação de tanto faz. A sensação de liberdade anárquica permanece”, assinala.

Ora, essas podem ter sido iguais motivações de base, mas é inegável que a utopia nerd dos anos 1970 se transformou num meganegócio que apenas finge promover as possibilidades humanas livremente – na verdade, paga-se caro pelo acesso a informações, mídias, plataformas de reuniões remotas etc (não estou falando só no preço dos planos de internet, vocês me entendem). Com a pandemia de 2020, a vida virtual saiu favorecida: ainda mais pessoas agora devem pensar que presenças e paisagens reais são dispensáveis ou substituíveis.

Essa, acredito, é justamente a crença contrária à de um hippie.

Um hippie não prioriza alternativas práticas, “confortáveis” – especialmente se elas implicam em vigilância, monitoramento das atitudes.

O próprio Byrne comenta que, quando chegou a São Francisco na época da juventude, sentiu-se atraído pela visão hippie-eco-tech… mas acabou vagando com um amigo pelas ruas de Berkeley, tocando violino e ukulele. Entretanto, o estilo Woodstock terminou há tempo, alguém poderia dizer. Hoje os andarilhos utilizam GPS, os nômades já não são criaturas secretas… Concordo, porém imagino que uma nova tendência virá – um retorno ao rústico, pelo abuso total da tecnologia.

Depois de nos obrigarem a usar tantas máquinas e conexões artificiais, e nos forçarem a manipular softwares para tudo, chegaremos um dia à exaustão revoltosa. Faremos um gesto que nem precisa ser grandioso – e, claro, não será divulgado no instagram. Simplesmente deixaremos o celular, a câmera, o carro, até mesmo as roupas, à beira de uma praia naturista. De lá sairemos com um tipo de sabedoria. Inigualável. Intraduzível. O trampolim da aventura.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

A memória da dor

Nesta parte final de nosso estudo sobre Lygia Fagundes Telles, trataremos de alguns de seus textos de cunho memorialístico, nos quais a autora revela os componentes de regra e também de mistério, que estão presentes no seu ato de narrar. Sem a técnica, um(a) artista não passa de alguém que improvisa de modo mais ou menos afortunado; por outro lado, sem a emoção, a verdadeira essência da arte lhe escapa – por isso, o equilíbrio entre estes elementos é tão importante.

Já percebemos uma discussão deste tema metaforizada no conto “A estrutura da bolha de sabão” – mas, antes que passemos à análise desta história, vamos recuperar sua origem. No texto “Bola de sabão”, presente no livro Conspiração de nuvens, encontramos a ideia da criação deste conto. Lygia explica como foi relacionando a memória com a ficção, dentro de um aprendizado infantil que também requer disciplina:

Então cerrei os olhos e como num sonho me vieram as lembranças das chácaras e quintais da minha meninice onde soprava as bolhas de sabão: enchia a caneca com sabão dissolvido na água, colhia o mais fino canudo do mamoeiro e sentada debaixo da mangueira ficava soprando as minhas bolhas. Bolas de sabão e não bolhas, alguém me alertou. Está certo, bolas, ah! como eram belas essas bolas coloridas que se desprendiam do canudo e iam subindo redondas e transparentes na mais delicada das mágicas. Película e oco. Era uma operação que exigia cuidado porque com o sopro forte a bola estourava no meu queixo. O sopro fraco também não funcionava porque assim elas nasciam tímidas e antes mesmo de se desprenderem desfaziam-se em espuma. Era preciso paciência até descobrir o sopro exato para que subissem gloriosas refletindo o verde da folhagem e o azul do céu… (TELLES, 2007, pp.22-3).

Mais adiante, a escritora ressalta que a bola de sabão era a própria “imagem do amor”, o que nos leva ao famoso título A disciplina do amor, reiterando a ideia de que o sentimento – bem como o trabalho artístico – parece requerer uma medida certa, para vibrar da melhor maneira.

Mas também pensamos no título da coletânea Conspiração de nuvens, pela associação entre bolas de sabão e nuvens, ambas efêmeras e voláteis. No conto “Anão de jardim”, integrante do livro A noite escura e mais eu, já observamos a perspectiva da alma como um “feixe de memórias”. Ora, há vários livros de Lygia que se enquadram nesta categoria de coleção memorialística – e, da mesma forma com que a recordação é um elemento imponderável (como a nuvem – ainda que reunida em coletividade, conspirando), igualmente podemos pensar na criação estética.

Muitos destes textos de memórias da autora são metalinguísticos, debruçam-se sobre o ofício da escrita, até mesmo como parte indissociável do universo biográfico e recordatório de Lygia. Nesse sentido, o processo de arquitetar as palavras em seu alcance certo, como o “sopro exato” para construir bolas de sabão, surge numa imagem representativa. E a sua estrutura misteriosa (“película e oco”) é tão frágil e surpreendente quanto o próprio ser humano – como aparece no conto intitulado “A estrutura da bolha de sabão” e como Lygia ressalta neste texto de memórias: “(…) só lá adiante vou descobrir (ou não) como funciona essa tal de estrutura que deve ser assim como o próprio ser humano, indefinível, inacessível. E incontrolável.” (p.23)

Esta é uma citação que, à primeira vista, parece contrariar o objetivo de alcançar a medida justa, a disciplina, o controle. Mas não esqueçamos que tal prática metódica – ajustada às emoções, ou ao fazer artístico – não apenas é um constante aprendizado, que passa pelas mais variadas frustrações (como o provam os contos que aqui analisamos, cheios de personagens que veem sua organização ou sua rotina ruir, em algum momento), mas é ainda uma prática que surge completamente despida de ranço doutrinário na obra de Lygia, visto que a própria reconhece que o humano é e sempre será “incontrolável” – embora o esforço da razão possa investir na direção contrária. O sucesso desta empreitada, porém, é circunstancial; como realização plena, será utópico.

Assim é que, na história intitulada “A estrutura da bolha de sabão”, temos o “amor calculado” para controlar o delírio das bolhas – um “amor de ritual sem sangue”. Mas sabe-se que a perfeição está condenada à ruptura; a disciplina não resiste por muito tempo; é frágil como uma bolha, transparente. Talvez por isso o personagem que se dedica ao estudo físico dessas bolhas de sabão seja um doente e apareça de chambre verde (a cor do místico), fazendo lembrar, no seu relacionamento com a esposa, os personagens-vítimas de mulheres representativas da morte, surgidos nos contos “Herbarium” e “O jardim selvagem”, por exemplo.

O texto “Elzira” também é bastante esclarecedor do universo criativo de Lygia. Trata de uma história contada pela mãe de Lygia, sobre uma antiga parenta, a “morta virgem” Elzira, que diante de um amor impossível preparou o próprio fim, com sinistra meticulosidade.

A persistência demonstrada por aquela parenta, através do seu plano para “apressar a morte”, talvez tenha sido uma das primeiras lições que Lygia Fagundes Telles recebeu, a respeito de como lidar com a dor. A tragédia de Elzira não é apenas o suicídio, mas passa pela constância de seu sofrimento que, apesar de aparentemente tão moderado (ou traduzido numa simples tristeza), foi grande o suficiente para aniquilá-la. É essa corrosão pela amargura íntima e sua capacidade de discrição o que interessa a Lygia e se transforma em matéria-prima da maioria de seus contos.

Ainda podemos lembrar, dentro desse veio biográfico, que a escritora aprendeu também a disciplina através da prática esportiva, como estudante de Educação Física na Universidade de São Paulo. Nesse sentido, o texto “O chamado” é uma das mais belas sínteses, pela menção à prática da esgrima. Por sua imagem simbólica do coração exposto que se entrega ao ataque, o esporte mostra como a técnica e o controle são vitais:

O professor provocava e investia enérgico nos treinos com máscara e florete. Em guarda! ele ordenava e eu tentando disfarçar a natural lerdeza, tinha que ser sagaz e me confundia em meio às ordens, Se defenda depressa que agora você se descobriu, olha o peito desguarnecido! Eu reagia tarde demais porque ele avançava implacável até tocar com a ponta do florete no meu coração exposto. (TELLES, 2007, pp.127-8)

Novamente no livro Conspiração de nuvens, encontramos outra relevante passagem. No texto dedicado a Machado de Assis, Lygia faz uma homenagem ao autor brasileiro, evocado não apenas por sua literatura, mas pela estátua posta na instituição que ele fundou, a Academia Brasileira de Letras. Inspirada pelo estilo machadiano, ela reflete sobre como o ser humano, apesar de toda a necessidade, quase sempre escapa de uma disciplina:

A natureza humana sem controle e sem explicação, e isso vem de longe, aquele lá da estátua sabia que o sedutor ou o repulsivo, o jovem ou o velho, o amado ou desamado, na paz ou na guerra – ah! ele sabia que esse ser inocente ou culpado não tem mesmo explicação. Afinal, não é em vão que se esmerou no ofício de “remexer a alma e a vida dos outros. (TELLES, 2007, p.33)

Um momento de identificação entre Lygia e Machado, neste texto, é quando ela menciona os “coágulos de sombra” da estética machadiana, as ambiguidades. É pertinente lembrar todas as análises anteriores que fizemos e que mostraram histórias roçando por enredos ambíguos, cheios de símbolos ou subentendidos que não se mostram claramente. Mas, para além disso, é sintomático observar como Lygia usa, para Machado de Assis, essa expressão, “coágulos de sombra”, retirada de um conto dela mesma, “O menino”.

As tais áreas nebulosas, portanto, zonas de descontrole ou mistério, são realçadas tanto por Machado de Assis quanto por Lygia Fagundes Telles – uma prova de como a autora reconhece que, em que pese o esforço por uma disciplina, permanecem os territórios imprevisíveis na literatura e na vida.

***

Este ciclo de textos se encerra aqui – provisoriamente, porque na verdade nada se fecha por completo. E, na expectativa de apontar horizontes disponíveis, recomendo um livro belíssimo, A construção de Lygia Fagundes Telles (Edufal, 2016), escrito por Nilton Resende. A obra realiza uma edição crítica de Antes do baile verde, acompanhando as revisões que a autora empreendeu ao longo do tempo. Os rastros de mudança, evidenciados pela trajetória das edições do livro, mostram “uma escritora que assume a coragem de ferir a própria criação, curando-a depois e entregando-a mais uma vez ao seu leitor” (p.477).

Observar as eleições estéticas que Lygia Fagundes Telles preferiu, de uma edição a outra, possibilita seguir o seu percurso de amadurecimento narrativo, compreender o processo criativo inquieto, que nunca cessa, em sua produção. Como destaca Resende, ao fim destas análises, o entendimento nos leva a uma certeza sobre Lygia: “é hora de reler”.

Tércia Montenegro (texto publicado também no jornal Rascunho)

Pandemundo

No canal do psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet, uma live do mês de junho traz uma conversa com Colette Soler, a principal herdeira das bases lacanianas. Essa pensadora já havia me capturado desde o seu livro O que Lacan dizia das mulheres, que uma pessoa querida me emprestou e até hoje não consegui devolver (por causa da quarentena, juro).

Pois bem, no tal vídeo, disponível no youtube, parte-se do conceito de “Pandemundo”, discutido por Soler para o levantamento de questões pertinentes a uma pós-epidemia. O assunto enseja inclusive um debate sobre a incidência política da psicanálise: afinal, esta, conforme Lacan, é uma compensação, o “pulmão artificial de um mundo que se tornou irrespirável”. Vale notar como o autor francês ultrapassou profeticamente a metáfora, se lembramos a atuação da covid, prejudicando sobretudo a capacidade respiratória.

O psicanalista recolhe o que sufoca, nas urgências subjetivas. Se isso parece ser algo essencial, não se torna necessariamente popular, tendo em vista que analisar o sofrimento nem sempre significa apaziguá-lo (o que outras terapias psicológicas parecem perseguir de modo imediato). E esse girar em torno da “impotência da verdade” agora talvez se defronte com circunstâncias ainda mais singulares.

A retomada dos hábitos e valores antigos, vinda com o desconfinamento, será um golpe nos que acenavam com utopias. Mas de fato torna-se difícil perceber o que muda na realidade, no que Lacan mencionava como esse “caminhar nas profundezas do gosto”, da escolha em si. A relação do sujeito com a morte – o significante-mestre – certamente foi responsável pela virada que despertou quase todos nós, por alguns meses em 2020. O temor da morte se tornou planetário; o evento foi, portanto, histórico.

Porém a hipótese de um despertar da humanidade, após o estupor, é polemizada pela frase de Lacan: “Quando despertamos de um pesadelo, é para continuar a dormir”. Eis o grande risco que vivemos: todas as reflexões, autoaprendizados, atitudes solidárias e políticas, decisões ecológicas e anti-consumistas, tudo o que de certa forma ganhamos com o pesadelo que nos tirou de uma vida mecânica em prol do(s) sistema(s) poderá persistir?

Talvez já estejamos readormecendo, diz Soler. E sobretudo a partir de agora, com uma reabertura ou “flexibilização” dos serviços e atividades públicas. Algumas pessoas começam a roncar, outras foram decididamente engolidas pelo velho estado catatônico, confundindo felicidade com rotina. Como bem pontuam os psicanalistas, o choque pode ter sido mundial, mas as respostas são particulares. O trauma revela o temperamento – ou a fantasia, o sintoma, aquilo que cada um tem na sua individualidade.

Eu sinceramente me apego aos que persistem atentos, validando mudanças que aconteceram em si próprios. Em respeito a esse processo, resistimos ao mecanismo anestésico de tudo o que se vende – e venderá – como “normal”.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

 

 

A pantera

A primeira vez que ouvi falar de Rilke foi, muito tempo atrás, num filme. Em “Tempo de despertar”, Robin Williams a certa altura recitava “A pantera” – e lembro que voltei muitas vezes a fita no videocassete, para copiar e decorar o texto. “De tudo o seu olhar cansado/ de novo nada mais retém/ Parece que há barras ao milhar/e, atrás das barras, ninguém” – nenhuma tradução que encontrei depois era tão bela quanto a desta legenda no filme, e eu me perguntava como seria ler o poema no original. Pois realizei o sonho: depois de cursar o alemão básico e o intermediário na Casa de Cultura, finalmente tive a ousadia de mergulhar no livro – Die schönsten Gedichte von Rainer Maria Rilke – que ganhei de presente da minha amiga alemã, Jasmin Müller. E ali encontrei “Der Panther”, em todo o seu esplendor: “Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe/so müd geworden, das ser nichts mehr hält./Ihm ist, al sob es tausend Stäbe gäbe/und hinter tausend Stäben keine Welt.” O privilégio de ler os versos na língua original de Rilke confirmou o que eu já sabia intuitivamente – a tradução usada no filme era não apenas bela, mas também muito eficaz.

 

Perto do baile verde

Tereza Yamashita

No texto que publicamos nesta coluna, na edição anterior do Rascunho, já observamos como a cor verde – ligada ao universo vegetal – injeta nos contos de Lygia Fagundes Telles uma associação mística, criando uma aura de mistério ou fatalismo. Hoje ainda roçaremos este aspecto, mas nossa ênfase se voltará para o (des)controle das ações e dos estados emotivos das personagens.

No livro Seminário dos ratos, por exemplo, o texto “Noturno amarelo” narra uma história sobre o tema das relações amorosas destruídas – com a cor verde representando uma espécie de redenção espiritual. Aqui vemos um jovem casal em crise[1], num carro em pane, em plena estrada noturna. O companheiro Fernando, para Laura, é uma “aventura medíocre de gozo breve e convivência comprida” (p.140). Ela, porém, vê-se liberta ao sentir o perfume da dama-da-noite, que lhe propicia um retorno às memórias. Mais uma vez percebemos como a presença vegetal aparece com um poder místico, transportando a narradora para o passado: “E atravessei a faixa de manto rasteiro que bordejava o caminho, a barra do meu vestido se prendendo nos galhinhos secos (…). Segui pela vereda. Tão familiar. Como a casa lá adiante, lá estava a casa alta e branca fora do tempo mas dentro do jardim.” (pp.140-1)

A recordação lhe traz a imagem de Rodrigo, o seu “amor tumultuado”, que estivera internado num sanatório após a tentativa de suicídio, motivada talvez pelo alcoolismo. Saíra da crise disciplinado, mas transformado em outra pessoa: “Sim, pensava, mas de modo diferente, sem aflição, sem rancor, estava bastante mudado depois da tentativa.” (p.151)

Observe-se aqui, num parêntese, como o “tumulto” de Rodrigo, na sua falta de controle inicial, pode ser associado a um tipo de loucura. O extravasamento das emoções, nos contos de Lygia, rapidamente conduz a uma interpretação de insanidade: as personagens são rotuladas por sua perturbação e indisciplina. Outros exemplos bastante esclarecedores estão também no livro Seminário dos ratos – é o caso dos contos “WM” e “A consulta”. Ambos tratam de doenças mentais; porém, enquanto nesta segunda história o paciente manipula outro indivíduo, assumindo a identidade de um médico, em “WM” o enredo se tece a partir de personalidades confusas e frágeis, apresentando primeiro um narrador que se preocupa com a doença da irmã e sente que, para ajudá-la, precisa ele “também descer aos infernos” (p.93).

A loucura de Wanda se constrói às avessas, a partir das iniciais invertidas das letras M e W: é seu o papel de ensinar o alfabeto ao irmão menor, que se tornará depois o narrador desta história. Num ambiente familiar marcado pela arte, a mãe se destaca como uma figura caótica e imersa na necessidade de aplauso:

(…) era uma atriz famosa mas agitada como um vento de tempestade. Ou estava estudando algum papel em meio a crises de angústia (era uma perfeccionista) ou estava dando entrevistas, ou experimentando roupas, ou telefonando, levava o telefone para o quarto, deitava e ficava horas falando com uma amiga ou algum amante. Pílulas para dormir, pílulas para acordar, a cara sempre lambuzada de creme. Não tomava conhecimento nem de Wanda nem de mim. (p.95)

É nesse espaço confuso, associado a um frenesi criativo, que o descontrole acontece no universo infantil. Surge em Wanda uma compulsão por marcar as letras, uma como inversão da outra, numa espécie de busca da própria identidade:

Uma estranha família, diferente das outras mas nessas diferenças não estaria o nosso vínculo? Dormi mal, com um curioso sentimento de que devia ficar em vigília. Madrugada ainda, pulei da cama: em todos os meus livros e cadernos, nas capas e nas folhas internas, os dáblios e os emes se multiplicavam em todos os tamanhos e cores. (p.98)

Mais tarde, no conto, percebe-se que esse transtorno de personalidade é singular, e o foco narrativo, suspeito. O verdadeiro doente é o personagem responsável pelo relato, e Wanda, a irmã, não passa de uma criação de sua cabeça. A esquizofrenia é revelada quando o protagonista se apaixona por Wing (e a constância dessa letra inicial nos nomes é mais um fator estranho a confirmar o desvio na perspectiva da história; afinal, é pouco provável que o médico se chamasse Dr. Werebe, por exemplo. Torna-se mais crível atribuir ao personagem doente essa “adaptação” dos nomes devido à sua insistência pelas iniciais invertidas). A jovem é vítima de sua violência delirante, e através de seu sofrimento somos expostos à realidade:

     Quando acendi o abajur, tentou esconder depressa os seios, seus lindos, seus pequeninos seios horrivelmente tatuados com um W e um M azul-marinho em cada bico. Cobri-a com o meu corpo, Wing amada, por que você deixou que ela fizesse um horror desses, eu não te avisei? Não respondeu. Seu olhar atônito ficou cravado em mim, mas do que eu estava falando? Que Wanda? Pois então não me lembrava? Fomos os dois ao homem das tatuagens que prometeu ser discreto, apenas duas letrinhas. (p.102)

Já em “A consulta”, Max, o paciente de um manicômio, assume o posto do psiquiatra, Dr. Ramazan, na ausência deste. Apesar de ser um doente confiável (a ponto de receber a tarefa de ficar na sala do médico e atender o telefone, num dia em que a secretária ainda não havia chegado), Max é um interno do hospício. Talvez dessa maneira justifique-se o impulso imprevisível que ele, apesar das aparências, ainda guarda em si. É isso o que o faz receber um paciente novo, sob a falsa identidade que a circunstância lhe propiciou: estando na sala do Dr. Ramazan, pode fingir ser o próprio, com todo o seu investimento de autoridade. Dentro deste perfil, Max ordena a um homem que cure o seu pânico da morte com uma atitude radical, matando-se.

Neste conto, novamente temos vários elementos recorrentes na obra de Lygia: o verde como uma cor mística ou mórbida (como quando o paciente recorda-se da mãe morta, que lhe estende uma mão a transpirar uma “umidade mole, verde”) e o sexo como oposição da morte (p.162), pela plenitude e beleza que escondem a velhice, o fim. O mais importante, porém, parece ser a oposição entre a desordem, representada pela loucura e pelo pânico, e a disciplina – associada aqui a uma normalidade tão extrema, que a cura absoluta dos desvios e emoções só existiria com a morte.

Reparamos, desse modo, que a cor verde na obra de Lygia Fagundes Telles está costumeiramente associada à morte e suas circunstâncias tangenciais (espiritualidade, mistério etc), todas contribuindo para o traçado de um comportamento rigoroso, disciplinado – típico da imobilidade dos vegetais (ou dos cadáveres), em oposição à pulsante imprevisibilidade dos seres humanos, que no extremo de suas emoções podem chegar à insânia. Às vezes a vibração vital é tão desorganizada que se torna perigosa e leva, paradoxalmente, a um anseio suicida.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho. Pode ser lido também aqui)

[1] A atmosfera é muito parecida à do conto “Lua crescente em Amsterdã”.