Escrever dormindo

Dormir é bom para os chakras e para a glândula pineal. É bom para o corpo horizontalizar-se e despir-se, em contraste com as demandas opostas da vigília. Mas você já pensou que o repouso também contribui – e bastante – para a literatura?

A vida é sonho, dizia Calderón de la Barca; os livros, igualmente. Não se pode criar uma obra artística sem imaginação – e quase sempre ela habita os recônditos da mente, acessados em momentos descontraídos.

Freud, eternamente associado à interpretação dos sonhos, foi cogitado para o Nobel de Literatura, e na mesma linha podemos ler os Seminários de Lacan: pelo seu valor poético, além de psicanalítico. A psicanálise sempre se interessou pela literatura, e o principal motivo é que a literatura vem dos sonhos. O seu método de composição em prosa assemelha-se a uma narrativa onírica: com condensação, deslocamento etc.

Lacan comenta, em “Função e campo da fala e da linguagem”, texto publicado nos seus Escritos: “Elipse e pleonasmo, hipérbato ou silepse, regressão, repetição, aposição, são esses os deslocamentos sintáticos, e metáfora, catacrese, antonomásia, alegoria, metonímia e sinédoque, as condensações semânticas em que Freud nos ensina a ler as intenções ostentatórias ou demonstrativas, dissimuladoras ou persuasivas, retaliadoras ou sedutoras com o que sujeito modula seu discurso onírico”.

Freud mencionara o Traumarbeit, o trabalho do sonho. Há uma narrativa em potencial a cada vez que “desligamos”. Wittgenstein, nos seus Diários, concorda:

“(…) poder trabalhar assemelha-se em tantos aspectos ao poder adormecer. Se pensarmos na definição freudiana de sono, poderíamos dizer que em ambas as coisas trata-se de um deslocamento massivo do interesse (Em um caso, trata-se de uma mera retirada, em outro de uma retirada & concentração em outro lugar).” 

Em outra entrada dos Diários, ele reitera: “Sob muitos pontos de vista, o sonho & o trabalho intelectual se assemelham. Manifestamente em função de ambos implicarem uma ausência de atenção em relação a certas coisas”. O flow, a concentração obsessiva numa atividade específica, é o procedimento comum entre criar e sonhar – além do uso da imaginação.

O sono profundo é um requisito para a saúde, e a ciência inclusive mostra como ele pode proteger até contra o Alzheimer. Eliminando os resíduos criados pelo funcionamento do cérebro em vigília, a proteína beta-amiloide – que se acumula, nos casos da citada doença – não chega a níveis anormais. Esse é um procedimento que ocorre na parte sem sonhos da noite, o “sono de ondas lentas”: algo funcional para o organismo. A parte com sonhos, que envolve o REM, seria então a fase estética do dormir – na medida em que se criam “filmes”, “cenas” ou “histórias” no inconsciente.

Essa percepção do valor artístico dos sonhos, naturalmente, não é nova. O automatismo psíquico do Surrealismo, lá pelo início do século XX, reforçou a ideia de que o inconsciente é muito mais ficcional que o consciente. Toda poética do devaneio se baseia neste princípio, aliás, e há inúmeros artistas (não só das palavras) que desenvolvem técnicas de sonambulismo, meditação transcendental ou estratégias para alcançar sonhos lúcidos, tendo em vista o aperfeiçoamento de sua criatividade. Existem estudos sobre a qualidade particularmente exótica de ideias hipnopômpicas – aquelas relativas ao período entre vigília e sono. O grande problema, neste caso, é manejar a transição, agarrar o tema antes que se ele perca nas brumas do sono efetivo – e sem deixar que ele se racionalize, torne-se censurado e conformado às expectativas óbvias de um assunto que se molda numa fórmula.

Voltando à psicanálise, Lacan recorda, nos seus Escritos:

“(…) continuam raras, senão pobres, as pesquisas sobre o espaço e o tempo no sonho, sobre seu estofo sensorial, sonho em cores ou atonal – e o odorífero, o saboroso e a pitada táctil porventura entram nele, se o vertiginoso, o túrgido e o pesado ali estão?”

A sinestesia também é um território rico (e pouco considerado) nas histórias sonhadas. E Karen Blixen, na Fazenda Africana, lembra maravilhosamente como dormir pode ser – além de um trabalho artístico e uma necessidade orgânica – um verdadeiro entretenimento, uma viagem:

“O prazer do verdadeiro sonhador não está na substância do sonho, mas no fato de que tais coisas acontecem sem a menor interferência da sua parte, e completamente fora de seu controle. Grandes paisagens criam-se por si mesmas, imensas e esplêndidas vistas, cores ricas e sutis, estradas, casas, que ele nunca viu ou ouviu falar. Estranhos surgem e são amigos ou inimigos, embora a pessoa que sonha nunca lhes tenha feito nada. Ideias de fugas e perseguições são recorrentes nos sonhos e igualmente arrebatadoras. Comentários excelentes e espirituosos são feitos por todos. É bem verdade que, se relembrados durante o dia, eles desbotam e perdem o sentido, pois pertencem a um plano diverso, mas assim que o sonhador se deita à noite, a corrente é de novo ligada e ele se lembra de como eram excelentes. A todo momento, o sentimento de uma imensa liberdade o circunda e o trespassa como o ar e a luz, uma beatitude sobrenatural. Ele é um privilegiado, aquele que nada tem a fazer, mas para cujo enriquecimento e prazer todas as coisas são reunidas; os reis de Társis virão lhe trazer presentes. Ele participa de uma grande batalha ou de um baile, e admira-se de, em meio a esses acontecimentos, desfrutar do enorme privilégio de continuar deitado.”

Parece não haver desvantagens em dormir (embora algumas vítimas do capitalismo considerem o ato um desperdício). Por experiência própria, eu me tornei uma defensora das longas noites de repouso, e hoje considero a falta de criatividade como sendo essencialmente um problema de insônia. Em última instância, bastaria ao sonhador aguçar o senso de observação – e, sobretudo, a memória – para constatar com que eficiência se pode escrever dormindo.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de janeiro de 2024)

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