Onda e rocha

Tenho relido os grifos que fiz nas recentes publicações de Virginia Woolf, A apresentação e Juntos e separados, em tradução de Ana Carolina Mesquita, pela editora Nós. Cada conto é apresentado num pequeno volume de bolso, e as duas histórias lidam com contradições, dúvidas entre a necessidade um comportamento rígido ou flexível.

Em A apresentação, polariza-se a vida intelectual e a vida social das mulheres: a primeira é constantemente avaliada pela protagonista Lily Everit, que numa festa experimenta a sensação de que “por baixo jazia intocado, como um fragmento de metal cintilante, o seu ensaio sobre o caráter do deão Swift” – e é essa espécie de segredo, de valor subjacente, que ela examina, ora constatando que o ensaio foi uma conquista da qual deve se orgulhar, ora minimizando o seu feito diante de tantos outros.

A ocasião de uma festa, quando os papéis sociais se evidenciam, proporcionam uma espécie de crise existencial, quando Lily se dá conta de que “todo o seu ser (já não mais afiado como um diamante que cinde o coração da vida) transformou-se num misto de alarme, apreensão e defesa, enquanto ela permanecia à margem no seu canto. Este era o famoso lugar: o mundo.”

Lily não se encaixava realmente no perfil que lhe exigiam: “Próprio dela era, em vez disso, correr e se apressar e meditar em longos passeios solitários, subir em portões, atravessar o barro e a bruma, o sonho, o êxtase da solidão”. Entretanto, ela reflete que a vida “se dividia (disso ela tinha certeza) em fato, aquele ensaio, e ficção, aquela saída; em rocha e onda, pensou ela no caminho, vendo as coisas com tanta intensidade que para todo o sempre enxergaria inextricavelmente fundidas a verdade e ela mesma”.

A ficção – a festa em que ela precisa desempenhar um papel para a sociedade de sua época – sufoca o que Lily elabora em sua autenticidade. Através da figura de Mrs. Dalloway, que conduz as regras desse mundo, ela recebe a “forma de vida regulada que caía como um jugo sobre seu pescoço”. O regulamento dizia que “não cabia a ela dominar ou assegurar e sim arejar e embelezar essa vida ordeira onde tudo já estava pronto; as altas torres, os sinos solenes, os edifícios construídos até o último tijolo pela labuta dos homens; os parlamentos idem; e inclusive o emaranhado dos cabos de telégrafo, pensou ela, olhando pela janela enquanto caminhava. Que tinha ela para fazer frente a essas conquistas masculinas monumentais?” O regulamento reservava às mulheres o lugar do acessório belo, fútil.

Compactuando com o sistema, Lily Everit é apresentada a Bob Brinsley – e, diante de “seu bronzeado, sua desenvoltura e descendência direta de Shakespeare, que poderia ela fazer senão deixar cair o seu ensaio, ah sim e todo o seu ser, cair no chão como um manto para ele pisotear, como uma rosa para ele despetalar? Assim ela o fez, enfaticamente, quando Mrs. Dalloway disse, ainda segurando sua mão como se temesse sua fuga daquela provação suprema, daquela apresentação: – Mr. Brinsley… Miss Everit. Vocês dois adoram Shelley. ­– Mas a dela não era adoração, se comparada à dele.”

A ironia de Woolf explode nos momentos em que descreve Bob Brinsley; fica claro que aquele rapaz tão autoconfiante é apenas um privilegiado da ficção patriarcal – corroborada inclusive por mulheres como Mrs. Dalloway, para quem o arranjo parece perfeito. Ela se emociona ao ver o zelo condescendente com que Bob cumprimenta a intimidada Lily e parece muito satisfeita com a complementaridade do par, pensando no seu próprio casamento, na maneira como confortavelmente se sentia protegida por uma figura masculina resolutiva. Entretanto, para Lily a sensação era de horror ao entrar naquele pacto: “ela era como uma desgraçada nua que, depois de buscar abrigo nalgum jardim ensombrado, é enxotada ouvindo que não, não existem santuários.”

Em Juntos e separados, a protagonista, Miss Anning, é uma mulher mais velha e experiente, mas ainda assim não deixa de se desvalorizar diante de um homem. Logo depois de ter sido apresentada a Mr. Serle – por Mrs. Dalloway, que segue injetando em seus convidados a opressão das conveniências –, Miss Anning faz um comentário sobre a beleza da noite, “mesmo sabendo que era tolice”. Ela tem quarenta anos de idade e já não se exige perfeição (“Mas uma pessoa tinha direito à tolice”), sobretudo se dimensiona uma escala maior, cósmica. O simples fato de olhar para o céu lembra que “suas vidas, vistas ao luar, [eram] algo tão longo quanto a vida de um inseto e tão importante quanto”.  Essa relativização, porém, não é suficiente para que ela abandone o que considera ser o seu papel – entreter um homem com uma conversa, não deixar o clima de constrangimento dominar o instante: “Esse era o perigo – ela não podia afundar na letargia”.

Miss Anning ostenta uma tranquilidade madura e, à maneira de Mrs. Dalloway, experimenta um sentimento conciliatório pequeno-burguês: ela se embebe na complacência de considerar “que havia algo reunido ali, um punhado de milagres”. Quando Mr. Serle julga que o seu conhecimento da Cantuária tinha sido superficial e turístico, ela quase se cala. Depois, porém, luta contra o comodismo e decide esclarecer àquele homem o que realmente aconteceu: ela adorou a Cantuária. Com tal revelação, tudo muda:

“Os olhos dos dois se encontraram; ou melhor, colidiram, pois cada qual sentiu que, por trás dos olhos, o ser recluso, que se esconde na escuridão enquanto seu colega ágil e superficial cuida de fazer acrobacias e de se sobressair para o espetáculo continuar, subitamente se levantou, atirou longe o manto e confrontou o outro. Foi alarmante; foi terrível.”

O contato com “o antigo êxtase da vida” desestabiliza aquelas pessoas, que ao longo das décadas frequentando a sociedade “tinham sido polidos até adquirir uma luminosa suavidade”. E, diante da súbita partilha, já não havia como recuperar uma conversação supérflua: “– A Cantuária vinte anos atrás – disse Miss Anning, como alguém que tapa uma luz intensa, ou cobre um pêssego chamejante com uma folha verde, por ser tão intenso, tão maduro, tão pleno”.

Mas a epifania não pode durar. Cai sobre ambos “um vazio paralisante de sentimentos”; eles deixam de fingir, falar. O desfecho traz a interrupção da experiência, rompida pela presença de alguém que surge: “E eles então puderam se separar”, diz Woolf, como se narrasse o final de uma lenda. A leitura nos deixa como Lily, numa “estranhíssima mistura de animação e medo, de vontade de não ser incomodada e ânsia de ser arrastada e atirada nas profundezas ferventes”.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de maio de 2024)

Ficções de si

Virginia Oldoini, a condessa de Castiglione, foi uma entusiasta da fotografia. No século XIX, quando esta tecnologia ainda era uma novidade, Virginia se fez retratar, deixando quase quinhentas imagens. Frequentando semanalmente o estúdio do fotógrafo Pierre-Louis Pierson, a aristocrata explorou a própria fisionomia em disfarces, poses e atitudes que pareciam nunca esgotar a versatilidade de sua lendária aparência. Afinal, dizia-se que as pessoas “Contemplavam sua beleza como iam ver as aberrações”. Os encantos de Virginia teriam tido até mesmo influência política, conforme algumas versões de alcova sobre a unificação italiana.

Não espanta, portanto, que os registros dessa personagem tenham inspirado um livro da francesa Nathalie Léger, escritora e curadora de artes. A exposição (DBA, 2023, em tradução de Letícia Mei), surge como uma renovada tentativa de responder à célebre indagação freudiana: o que quer (e, no fundo, o que é), uma mulher? “No trajeto um pouco sinuoso da feminilidade, a pedra na qual tropeçamos é outra mulher”, diz a autora. O tropeço que a Castiglione proporciona faz com este livro explore uma série de associações – com outras obras artísticas e com a própria vida familiar de Léger, a autora. “O que eu procuro é a inconsequência de uma lembrança, seu traço um tanto titubeante por meio dos objetos, é um gesto, ou apenas uma intenção que persiste e se desfaz na matéria”, ela assinala à página 53.

Desde o início, a Castiglione me trouxe à mente a personagem retratada por Susan Sontag em O amante do vulcão, outra figura histórica e de beleza memorável: Emma Hamilton. Vivendo numa época pré-fotografia, Emma posou muitíssimo, mas para pintores; dentre eles, Elisabeth Vigée-Le Brun, que a retratou como uma Ariadne. Era comum que modelos transitassem entre papéis míticos, sacros e outras poses mais realistas, e Emma exercia seus talentos interpretativos também numa série de espetáculos conhecidos como “Atitudes”. Vale a pena reler a descrição de Sontag:

“Sobre a cabeça ela atirava um longo xale que chegava até o chão e a cobria por completo. Assim oculta, enrolava-se em outros xales e começava a fazer os ajustes internos e externos (drapeado, tônus muscular, sentimentos) que lhe permitiam emergir como outra pessoa, uma pessoa diferente). Para fazer isto – não era como colocar uma máscara – deve-se ter uma relação muito solta com o próprio corpo. Para fazer isto deve-se ter um dom para a euforia. Ela flutuava, ela pousava, ela se imobilizava – o coração martelando, enquanto enxugava a transpiração do rosto. Uma rápida sequência de expressões faciais, tendões tensos, mãos enrijecidas, a cabeça pendendo para trás ou para o lado, uma inspiração profunda –

E então de repente levantava-se o xale, seja atirando-o fora ou elevando-o um pouco, e fazendo-o parte da vestimenta da harmoniosa estátua viva em que se transformara.”

A mímica de Emma, minuciosamente premeditada, traz o mesmo tipo de cuidado que vemos nos disfarces escolhidos por Virginia, ao se fotografar. As duas estão motivadas pelo “momento de perfeito esquecimento de si”, pela invenção de uma outra mulher possibilitada pelos travestimentos do retrato. Escreve Léger:

“Ela pensou bastante no objeto da sessão, qual cena, qual figurino, qual personagem? e a luz, a direção do perfil, e a história, o relato de si mesma, a lenda a cada vez retomada, reinterpretada, com incisos incontáveis e variantes, a história interior, certos dias murmurada, em outros fiada, fluida, um canto. Montesquiou conta que ela volta para casa para se trocar, apanhar um acessório, vestir uma roupa. Podemos também imaginar que ela se despe numa das pequenas cabines contíguas ao estúdio, ela mandou levarem alguns figurinos para lá, será Judite ou Elvira ou a rainha da Etrúria, é uma normanda da região de Caux (sentada bem ereta numa pequena cadeira de palha, de vestido de lã vermelha, avental azul-escuro, penteado alto em fina guipure, ela tem nas mãos um tricô, uma meia grossa listrada que ela parece terminar, os cotovelos junto do busto, mas, sob as anáguas de tecido pesado, as coxas estão afastadas, pernas solidamente plantadas, pés presos em sapatinhos de verniz com tiras, o novelo rolou no chão, um estranho sorriso bobo paira em seu rosto), é uma marquesa do século XVIII, é uma carmelita severa, ela é a Beatriz de Legouvé, ela é Virginie, a casta afogada, é a devoradora de homens como Donna Elvira, ela se veste de chinesa, de finlandesa, é um funeral, um banquete, um baile.” (pp.27-8)

N’A exposição, a condessa de Castiglione é comparada a uma Cindy Sherman dos primórdios fotográficos. Mas lembremos de preferência Telma Saraiva, artista brasileira que igualmente compôs autorretratos para desenvolver uma ficção de si, inspirada em atrizes e outras figuras célebres – com o mérito de ter tido essa iniciativa trinta anos antes de Sherman. Apesar de toda a dificuldade de importar tintas para colorir retratos, Telma Saraiva, sem sair do Crato, no sul do Ceará, compôs um rico acervo de autotransformação, precursor do trabalho de tantos artistas atuais. O simulacro que subjaz à persona representada em obras de Ana Mendieta, Helga Stein e Daniela Comani, dentre outros nomes, repousa nesse princípio de que o retrato posado não escapa à simulação.

Annateresa Fabris, em estudo sobre identidades virtuais, já assinalava que através da pose “o indivíduo deseja oferecer à objetiva a melhor imagem de si, isto é, uma imagem definida de antemão, a partir de um conjunto de normas, das quais faz parte a percepção do próprio eu social”. Não é garantido que esta “melhor imagem” seja algo estável, nem mesmo belo, conforme os conceitos tradicionais de beleza. A flutuação por várias possibilidades é o que faz interessante a iniciativa da Castiglione, tanto quanto a das outras artistas aqui mencionadas.

Nathalie Léger ao contar, nas brechas de suas reflexões sobre a protagonista, a própria narrativa familiar, também maneja disfarces, hipóteses que se insinuam nos fragmentos associativos. Ela produz assim retratos literários de sua mãe, de sua avó, de seu pai, como se dispusesse em cena mais personagens posados, arranjados com máscaras e acessórios excêntricos. Afinal, A exposição se volta para uma instância do invisível, a fantasmata que o movimento extravasa: “A fotografia permite captar, na dança incessante da mulher sob o olhar do outro, esse estado de pedra que revela a instantaneidade de um segredo. É isso que ela teria desejado expor.” (p.106)

E é isso o que este livro revela – para quem o lê como quem contempla.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de abril de 2024)

Literatura em riste

A arte cavalheiresca do arqueiro zen, de Eugen Herrigel, é um clássico – mas só eu me interessei recentemente por ele, em parte devido ao esporte e, em parte, por todas as ligações que investiguei entre arco e flecha, fotografia, alvos, tiros certeiros etc. A literatura, certamente, poderia entrar nesta lista de associações? Ora, se o zen-budismo serve para toda e qualquer coisa na vida…

Logo no início do livro, Herrigel esclarece que a arqueria tem o seu menor valor na dimensão atlética; conforme explica, o resultado dessa atividade é uma “intuição prájnica”, associada a uma sabedoria transcendental. Com toda a dificuldade de entendimento que nos esmaga no Ocidente, ainda podemos nos aproximar dessa experiência através da meditação, da “transcendência dos limites do ego”.

Embora o livro esteja voltado, assim, para uma reflexão espiritual, que mostra como por meio da arqueria se pode atingir uma experiência mística (“No fundo, o atirador aponta para si mesmo e talvez em si mesmo consiga acertar”), torna-se válido também para pensar sobre a literatura. Afinal, a contemplação dos ambientes e das pessoas, a disponibilidade imaginativa, a espera e a mira sobre a palavra exata são atos familiares aos melhores escritores.

Há alguns conselhos claros, que servem universalmente. A importância da respiração – como em qualquer prática meditativa – é ressaltada como um meio indispensável, bem como a concentração. Esta, entretanto, não é uma atitude rígida: “tudo depende de que, esquecidos por completo de nós mesmos e livres de toda intenção, nos adaptemos ao acontecer: a execução de algo exterior desenvolve-se com toda a espontaneidade, prescindindo da reflexão controladora.” É possível que essa passagem seja a mais difícil para compreendermos – e aplicarmos em literatura. Mas no final do volume o autor relembra algumas ações surrealistas, que, com o automatismo psíquico, aproximaram-se do efeito espontâneo que o zen budismo sugere.

Há também a recomendação de rituais: uma sequência de preparativos tem a capacidade de sintonizar a pessoa, relaxando-a e concentrando-a nos gestos a cumprir na criação de sua arte. Podemos lembrar quantos escritores já não declararam seguir uma rotina – às vezes até excêntrica – que produz um tipo de atmosfera propícia ao trabalho.

Mas engana-se quem imagina que este livro se converte num manual de produtividade e estratégias para alcançar o sucesso. Um trecho recorda que estamos diante da proposta de esvaziamento zen:

“O homem é definido como um ser pensante, mas suas grandes obras se realizam quando não pensa e não calcula. Devemos reconquistar a ingenuidade infantil, através de muitos anos de exercício na arte de nos esquecermos de nós próprios. Nesse estágio, o homem pensa sem pensar. Ele pensa como a chuva que cai do céu, como as ondas que se alteiam sobre os oceanos, como as estrelas que iluminam o céu noturno, como a verde folhagem que brota na paz do frescor primaveril. Na verdade, ele é as ondas, o oceano, as estrelas, as folhas.”

A beleza desta noção de vazio é que ele se torna o contrário da nulidade, por envolver a integração absoluta com o mundo, através da técnica de uma plácida observação sem desejos de mudança ou julgamentos. Tal método nos prepara para o principal:

“A arte genuína”, afirmou o mestre, “não conhece nem fim nem intenção. Quando mais obstinadamente o senhor se empenhar em aprender a disparar a flecha para acertar o alvo, não conseguirá nem o primeiro e muito menos o segundo intento. O que obstrui o caminho é a vontade demasiadamente ativa. O senhor pensa que o que o não for feito pelo senhor mesmo não dará resultado”.

Aplicando à literatura, ressaltamos a necessidade de confiar no fluxo e na capacidade que têm as histórias de seguirem um curso próprio, sob a condução, mas não o total controle, do autor. Assim, mais adiante o livro expõe como o desprendimento traz os melhores fins:

“Não teria a impressão de que as diferentes fases do processo realizador se deram através de suas mãos, como que emanadas de um poder superior, e não saberia jamais com que força embriagadora o vibrante impulso de um acontecimento é capaz de transmitir-se a quem é, em si mesmo, mera vibração, pois tudo o que faz está feito antes que o saiba?”

A conclusão, páginas depois, é firme: “a criação autêntica só é possível num estado de desprendimento de si mesmo, durante o qual o criador não está presente como ele mesmo.”

A essência de todo movimento criativo está na elaboração de um produto íntimo: “A arte da obra interior que não se desprende do artista como a exterior, a que ele não pode fazer, mas unicamente ser, surge das profundezas.” Trata-se de um resultado intrínseco e intransferível, que não conhece público e, portanto, não se submete a interpretações. Fora da esfera do cognoscível, a arte interior, meditativa e mística, seria o grande objetivo de quem procura evoluir verdadeiramente.

Entretanto, todas essas considerações talvez sejam nada mais do que delírio, diante da doutrina zen. Lembremos outra fala do mestre, no livro: “O senhor está enganado se pensa que pode tirar algum proveito da compreensão de tão obscuras conexões, inalcançáveis para o intelecto. Lembre-se de que na natureza ocorrem coincidências incompreensíveis, e não obstante tão comuns que nos acostumamos a elas: a aranha dança sua rede sem pensar nas moscas que se prenderão nela.”

Adotemos, portanto, a teoria taoísta do wu-wei (vontade passiva, vazio pleno), para dançar também um texto: sem pensamentos, sem tensões ou intenções – apenas seguindo o rumo dessa literatura, mantendo uma postura que aponta.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, no jornal Rascunho de março de 2024)

MARCOS XREDA

As caminhadas

Equatoriais, volume de contos de Maurício de Almeida (Maralto, 2023), é descrito como “um livro sobre as estradas que cortam o Brasil e seus povos originários”. O autor foi vencedor do prêmio Sesc de Literatura (com seu primeiro livro de contos, Beijando dentes, publicado pela Record em 2008)  e do prêmio São Paulo (com o romance A instrução da noite,  editado pela Rocco em 2017). Antropólogo de formação, Maurício de Almeida costura com destreza aspectos históricos com o cotidiano de seus personagens.

O texto-título já apresenta uma contundente reflexão sobre os massacres de indígenas na raiz de nossa formação nacional. A narrativa se desenrola à medida em que acompanha o trajeto do protagonista num caminho que recupera épocas, não somente paisagens. Nesses ambientes onde “tudo é prosaico e definitivo”, pensamos sobre o bárbaro, o diferente, o alvo de preconceito – e sentimos a ressonância de um grande problema de desentendimento.

Conforme apontam Karnal e Estevam, no recente Preconceito – uma história (Companhia das Letras, 2023), somos “ensinados, culturalmente, em grupo, a odiar e segregar. (…) Nem sempre um ser humano reconhece outro ser humano como igual ou semelhante. Ao analisarmos historicamente esse mecanismo de construção do outro, podemos refletir sobre como ele é comum. Houve vários momentos históricos em que nossos antepassados (mas isto pode ser dito também de muitos contemporâneos) viram seus semelhantes como diferentes, menos humanos, sem traço algum de humanidade. (…) O jogo relacional do eu e do outro e a produção de preconceitos e toda a violência deles decorrente parecem historicamente presentes em nossa memória partilhada”.

No caso do Brasil, esse amálgama de exclusões trágicas fica bem evidente – e, no conto de Almeida, o protagonista anda, assim, reverberando o passo dos fantasmas. Narrar é uma solução, embora não definitiva: “Minha agitação talvez seja vermelha: como lhe contar que vi e ouvi o que a retórica do extermínio desumaniza? E mesmo assim a palavra não é suficiente se lhe digo que estão sendo mortos.” (p.12)

A preocupação metalinguística aparece também logo adiante, a propósito do próprio percurso – e de seu início: “Origem é um lugar e um tempo, penso, e mesmo essa ideia talvez seja um jogo de palavras” (p.20). Esta, aliás, pode ser a principal qualidade da literatura: dar significado ao passado, fabulá-lo e reconstruí-lo, para que se torne suportável?

Em outros contos, encontramos passagens bem poéticas, com personagens que transitam apesar de não saber se são “relógios ou astrolábios”, mas seguem como um “complexo harmônico, comunhão de dentes” a colocar em movimento a maquinaria da vida” (p.38). Cada texto em primeira pessoa desloca o(a) leitor(a) para uma percepção nova, faz adentrar o universo de figuras diferentes.

Destaco “Estuário”, texto em que se acompanha o desgosto de um filho obscurecido pelo pai, músico sobre quem se faz um vídeo:

 “Por isso, ao ver essa pantomima da qual ele se apropriou, esse documentário que só referendará o ídolo, compreendo que estou aqui apenas para reafirmá-lo superior, permanecendo figurante nessa história estúpida que fez da minha vida uma confusão por tanto tempo. E, se assim for (como se o benefício da dúvida servisse a todos): busco o conforto de uma dor cotidiana? Devo declarar com todas as letras que não pactuo com esse desleixo nem me deslumbro com o estilo desregrado (meu trabalho engravatado, as demandas da rotina, minha esposa em casa), que não entendo a devoção pelo narcisismo desse homem infantilizado que calhou de ser meu pai?” (p.53)

No final, o próprio filho dá a notícia de que vai ser pai – e sabe que mais um ciclo se instaura: “(…) pressinto a confluência turbulenta dessas águas com o mar e a difícil liberdade que precede o encontro, porque, se há conflito, há também caminho: o rio se estende continente adentro – e me alegro”. (p.61)

Mas talvez o grande tema de Equatoriais sejam as viagens, os trânsitos e fugas, as formas de perambular. Do conto “Ouroboros”, salta uma frase: “Se vivemos intensamente, coisas novas aparecem”. Esta parece ser a grande esperança – a ânsia repetitiva que lança os personagens à estrada.

As viagens se fundem à existência, a partir da metáfora dos enxertos, presente no conto “Sobre as causas das plantas”: “É provável que os chineses utilizassem a enxertia de plantas desde três mil e quinhentos anos antes de Cristo. Teofrasto refere-se a tal procedimento no tratado botânico De causis plantarum por volta de 300 a.C., Virgílio a descreve em suas Geórgicas. Os registros são antigos, o gesto é elementar à criação: a união de duas partes para se conceber algo novo.” (p.90)

A maioria das personagens de Almeida vive dessa maneira híbrida, carregando o enxerto de suas travessias. Em “Adentro”, outro texto, lemos que “para nosso mais íntimo horror, pressente-se que há uma espécie de imperativo inexplicável cobrando a continuidade ainda que não se saiba a razão, como se, por haver caminhos, devêssemos caminhar”. (pp.85-6)

Essa compulsão dinâmica, ritmo obrigatório da própria existência, surge explícita também no conto “Asfalto”: “caminhamos para não morrer e nem deixar morrer, caminhamos a despeito da culpa, apesar de qualquer coisa”. (p.129) É a reconstrução da vitalidade, página a página, pela diligência de cada um dos textos de Equatoriais, que faz deste livro uma ótima escolha para pôr-se em movimento – seja através de ênfases etnográficas ou ficcionais –, numa expedição por suas histórias.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de fevereiro de 2023)

Escrever dormindo

Dormir é bom para os chakras e para a glândula pineal. É bom para o corpo horizontalizar-se e despir-se, em contraste com as demandas opostas da vigília. Mas você já pensou que o repouso também contribui – e bastante – para a literatura?

A vida é sonho, dizia Calderón de la Barca; os livros, igualmente. Não se pode criar uma obra artística sem imaginação – e quase sempre ela habita os recônditos da mente, acessados em momentos descontraídos.

Freud, eternamente associado à interpretação dos sonhos, foi cogitado para o Nobel de Literatura, e na mesma linha podemos ler os Seminários de Lacan: pelo seu valor poético, além de psicanalítico. A psicanálise sempre se interessou pela literatura, e o principal motivo é que a literatura vem dos sonhos. O seu método de composição em prosa assemelha-se a uma narrativa onírica: com condensação, deslocamento etc.

Lacan comenta, em “Função e campo da fala e da linguagem”, texto publicado nos seus Escritos: “Elipse e pleonasmo, hipérbato ou silepse, regressão, repetição, aposição, são esses os deslocamentos sintáticos, e metáfora, catacrese, antonomásia, alegoria, metonímia e sinédoque, as condensações semânticas em que Freud nos ensina a ler as intenções ostentatórias ou demonstrativas, dissimuladoras ou persuasivas, retaliadoras ou sedutoras com o que sujeito modula seu discurso onírico”.

Freud mencionara o Traumarbeit, o trabalho do sonho. Há uma narrativa em potencial a cada vez que “desligamos”. Wittgenstein, nos seus Diários, concorda:

“(…) poder trabalhar assemelha-se em tantos aspectos ao poder adormecer. Se pensarmos na definição freudiana de sono, poderíamos dizer que em ambas as coisas trata-se de um deslocamento massivo do interesse (Em um caso, trata-se de uma mera retirada, em outro de uma retirada & concentração em outro lugar).” 

Em outra entrada dos Diários, ele reitera: “Sob muitos pontos de vista, o sonho & o trabalho intelectual se assemelham. Manifestamente em função de ambos implicarem uma ausência de atenção em relação a certas coisas”. O flow, a concentração obsessiva numa atividade específica, é o procedimento comum entre criar e sonhar – além do uso da imaginação.

O sono profundo é um requisito para a saúde, e a ciência inclusive mostra como ele pode proteger até contra o Alzheimer. Eliminando os resíduos criados pelo funcionamento do cérebro em vigília, a proteína beta-amiloide – que se acumula, nos casos da citada doença – não chega a níveis anormais. Esse é um procedimento que ocorre na parte sem sonhos da noite, o “sono de ondas lentas”: algo funcional para o organismo. A parte com sonhos, que envolve o REM, seria então a fase estética do dormir – na medida em que se criam “filmes”, “cenas” ou “histórias” no inconsciente.

Essa percepção do valor artístico dos sonhos, naturalmente, não é nova. O automatismo psíquico do Surrealismo, lá pelo início do século XX, reforçou a ideia de que o inconsciente é muito mais ficcional que o consciente. Toda poética do devaneio se baseia neste princípio, aliás, e há inúmeros artistas (não só das palavras) que desenvolvem técnicas de sonambulismo, meditação transcendental ou estratégias para alcançar sonhos lúcidos, tendo em vista o aperfeiçoamento de sua criatividade. Existem estudos sobre a qualidade particularmente exótica de ideias hipnopômpicas – aquelas relativas ao período entre vigília e sono. O grande problema, neste caso, é manejar a transição, agarrar o tema antes que se ele perca nas brumas do sono efetivo – e sem deixar que ele se racionalize, torne-se censurado e conformado às expectativas óbvias de um assunto que se molda numa fórmula.

Voltando à psicanálise, Lacan recorda, nos seus Escritos:

“(…) continuam raras, senão pobres, as pesquisas sobre o espaço e o tempo no sonho, sobre seu estofo sensorial, sonho em cores ou atonal – e o odorífero, o saboroso e a pitada táctil porventura entram nele, se o vertiginoso, o túrgido e o pesado ali estão?”

A sinestesia também é um território rico (e pouco considerado) nas histórias sonhadas. E Karen Blixen, na Fazenda Africana, lembra maravilhosamente como dormir pode ser – além de um trabalho artístico e uma necessidade orgânica – um verdadeiro entretenimento, uma viagem:

“O prazer do verdadeiro sonhador não está na substância do sonho, mas no fato de que tais coisas acontecem sem a menor interferência da sua parte, e completamente fora de seu controle. Grandes paisagens criam-se por si mesmas, imensas e esplêndidas vistas, cores ricas e sutis, estradas, casas, que ele nunca viu ou ouviu falar. Estranhos surgem e são amigos ou inimigos, embora a pessoa que sonha nunca lhes tenha feito nada. Ideias de fugas e perseguições são recorrentes nos sonhos e igualmente arrebatadoras. Comentários excelentes e espirituosos são feitos por todos. É bem verdade que, se relembrados durante o dia, eles desbotam e perdem o sentido, pois pertencem a um plano diverso, mas assim que o sonhador se deita à noite, a corrente é de novo ligada e ele se lembra de como eram excelentes. A todo momento, o sentimento de uma imensa liberdade o circunda e o trespassa como o ar e a luz, uma beatitude sobrenatural. Ele é um privilegiado, aquele que nada tem a fazer, mas para cujo enriquecimento e prazer todas as coisas são reunidas; os reis de Társis virão lhe trazer presentes. Ele participa de uma grande batalha ou de um baile, e admira-se de, em meio a esses acontecimentos, desfrutar do enorme privilégio de continuar deitado.”

Parece não haver desvantagens em dormir (embora algumas vítimas do capitalismo considerem o ato um desperdício). Por experiência própria, eu me tornei uma defensora das longas noites de repouso, e hoje considero a falta de criatividade como sendo essencialmente um problema de insônia. Em última instância, bastaria ao sonhador aguçar o senso de observação – e, sobretudo, a memória – para constatar com que eficiência se pode escrever dormindo.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de janeiro de 2024)

A arte da suspeita

O equívoco que Alia Trabucco Zerán conta, logo no início de As homicidas (Fósforo, 2023), é revelador: “Assassinas, respondo eu, repetidas vezes, quando me perguntam sobre o assunto deste livro. E, diante de mim, como um roteiro teimoso, se desenrola a mesma cena toda vez que falo. (…) Em vez de ouvir a palavra ‘assassinas’, um estranho lapso mental os leva a entender o oposto: ‘assassinadas’.” (p.11) A constatação – de que “é mais fácil imaginar uma mulher morta do que uma mulher que mata” (p.11) – vem do fato de que, claro, existe uma contribuição estatística para este raciocínio vicioso. No mundo inteiro, apenas 5% dos homicídios são cometidos por mulheres, aprendemos no epílogo do volume. Mas o que a obra de Trabucco Zerán traz se apresenta sob camadas bem menos óbvias.

A autora se propôs a investigar os crimes efetivados por quatro pessoas de épocas diversas: a dona de casa Corina Rojas, a jornaleira ambulante Rosa Faúndez, a escritora María Carolina Geel e a empregada doméstica María Teresa Alfaro. Por serem mulheres, as criminosas receberam, da mídia, da justiça ou das artes, interpretações tendenciosas, propagadas em discursos convictos: “As homicidas submergiam em um mar revolto que eu tinha de aprender a navegar. Essa tarefa levaria anos. Um tempo em que tive, em primeiro lugar, de me aperfeiçoar na arte da suspeita. Devia duvidar da palavra de advogados e médicos, interrogar o sensacionalismo dos repórteres, desconfiar das narrativas dos romances e compreender que uma pergunta é muitas vezes uma acusação velada”. (p.16)

Amparada por uma rigorosa inspeção de documentos (que permite caminhar por uma história do feminismo no Chile, costurando os episódios criminais com outros tipos de preconceito, como aquele dirigido contra indígenas), a pesquisa de Trabucco Zerán também alcança qualidade literária. O lado histórico convive com a expectativa de estilo true crime e é pontuado por inserções do diário da autora. Essas interrupções dão conta do árduo caminho para conseguir papéis nos arquivos judiciários, com funcionários ainda tendendo ao silenciamento da era Pinochet, e com as escolhas da própria escritora, sobre as melhores alternativas para seu relato.

O resultado é um texto com toques de suspense muito bem urdidos, alcançando uma narrativa poética e cênica no capítulo “Como se fosse da família”. Trabucco Zerán, além disso, persegue os “ecos” das histórias que conta, mostrando como os crimes viraram estopim para a arte. Canções, folhetins, dramaturgias, fotos, exibições performáticas, espetáculos de dança ou desenhos, obras em sua maioria criadas por mulheres, propagaram o tema. Em alguns casos, as interpretações endossaram o sensacionalismo da imprensa e mesmo do discurso jurídico. Fica claro como a sociedade de cada década se esforça para entender uma mulher assassina, dar-lhe um sentido dentro do perfil com que as figuras femininas costumam ser vistas. Assim, essas homicidas foram patologizadas – para que a pacífica esposa e mãe não saísse de seu enquadramento clássico. Pensar que as criminosas eram falsas mulheres, “não pertenciam ao sexo frágil”, ou adoeceram motivadas por paixões como o amor e o ciúme, é relativizar os crimes, colocá-los como uma exceção fortuita, jamais como uma possibilidade real.

“Uma mulher que mata está duas vezes fora da lei: fora das codificadas leis penais e fora das leis culturais que regulam a feminilidade” (p.12) Os textos consultados sobre os crimes apostam na ideia de que a mulher não exerce a violência sem que seja “arrebatada” por um sentimento, ou influenciada. Sua autonomia, sua própria maldade, é desacreditada. A violência demencial surge como uma categoria que dificilmente atenua os crimes cometidos por homens, porque o arquétipo masculino já admite – e até celebra – a agressividade.

Quando a raiva é exposta como um motivo para o ato criminoso, por exemplo, não se valida a sua legitimidade: “Trata-se de uma emoção que aponta o dedo para uma injustiça, não uma mera falta de sorte, e admitir essa injustiça supõe exigir uma reparação. Por essa lógica reivindicatória, a raiva é considerada por Prye e por outros filósofos contemporâneos como uma emoção política fundamental, e é essa dimensão que explica por que desperta tantas resistências quando se vincula ao feminino. No corpo das mulheres, a raiva costuma ser adjetivada como desmedida, irracional ou de origem histérica, denominações que cumprem a função de deslegitimar suas causas e de apagar o fator responsável por ela.” (p.181)

 Trabucco Zerán reflete, em sua conclusão, sobre o que o perdão esconde, quando direcionado às mulheres assassinas. Embora no Chile houvesse a pena capital, revogada apenas em 2001, nenhuma mulher foi fuzilada no país. As personagens do livro receberam indultos, tiveram suas penas abreviadas, ganharam uma clemência que também se coloca sob suspeita; afinal, perdoar está muito próximo de esquecer – e de desprezar. Isso demonstra uma estrutura social que, de maneira mais ou menos sutil, continua a colocar as mulheres como incapazes, como criaturas irresponsáveis ou frágeis: “o perdão reforça os fundamentos simbólicos da desigualdade de gênero e desativa o poder latente da mulher homicida” (p.191).

O fuzilamento, aliás, poderia transformar uma criminosa em mártir ou santa; faria com que seus atos ganhassem um realce ainda maior, problematizando a própria sociedade: “A violência feminina põe em xeque as normas que definem o que é ser mulher e permite revisar criticamente as invisíveis leis de gênero. Essas leis que homologam o feminino à debilidade e à submissão”. (p.195)

Com As homicidas, Trabucco Zerán se afasta do “conforto das dicotomias” e “trabalha com as representações discursivas da mulher criminosa” (p.199), sem pretender apontar certezas ou sentenças inquestionáveis. Ela nos lembra de que reler é uma tarefa feminista, e recordar as mulheres más, também – porque é só assim, admitindo a sua maldade e violência, que as encaramos como sujeitos. Enquanto exercício de liberdade intelectual, este livro é inspirador; enquanto obra estética, igualmente. A autora chilena nos mostra como fugir dos rótulos rasteiros se torna condição inescapável para mergulhar na profundidade do pensamento. Daí o exercício da suspeita – que nos retira do eixo trivial, seja ele condenatório ou salvacionista.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de dezembro de 2023)

Mestra da atitude

O hábito que tenho – de ler mais de um livro ao mesmo tempo – fez com que na minha cabeceira acontecesse um encontro entre As pequenas chances (Todavia, 2023), de Natalia Timerman, e A repetição (Relógio d’Água, 2010), de Søren Kierkegaard. Uma feliz circunstância essa, pois, de modo premeditado, eu não poderia jamais montar um diálogo que foi construído com tanta sintonia, pelo acaso.

O romance da escritora paulista pode ser classificado como uma elegia ao pai morto: com uma protagonista homônima à autora, caminhamos no território da autoficção, experimentando o sentimento de adentrar a intimidade mais delicada de todas, a do luto. Em contrapartida, o filósofo dinamarquês cria um alter ego, Constantin Constantius, para refletir sobre o mecanismo das insistências, num ensaio que mescla humor e epistolografia aos debates sobre ética. Mas, apesar das dissidências de estilo, propósito, cultura etc, os pontos de afinidade entre os dois livros são impressionantes.

Lacan também pensou sobre o tema da repetição (sobretudo no Seminário 2) e chegou a investigar a compulsão das retomadas como uma tentativa de reconstituição ou de superação. Para Kierkegaard, o amor-repetição é o único bem-aventurado, pois traz a segurança: uma pessoa “só se cansa do novo, mas não das coisas antigas, cuja presença constitui uma fonte inesgotável de prazer e felicidade”. Este é um ponto de vista bem calcado na reconstituição de sentimentos primários, associados à infância – quando o reconhecimento de uma situação, e do afeto que a acompanha, pode instalar um conforto psíquico capaz de dissipar o medo e a incompreensão que em geral rondam crianças muito pequenas.

Lidar com o desamparo e elaborar a violência do vazio em saudade são procedimentos inescapáveis diante do luto – por isso, o consolo das repetições chega como uma estratégia saudável. Kierkegaard afirma que somente “a relação com Deus pela fé possibilita a repetição”. Ora, a crença que a maioria de nós sustenta, de um encontro com os seres amados num além-vida, seria uma repetição dessa espécie, a única viável dentro das circunstâncias, transcendente.

No livro de Timerman, o anteparo da fé suaviza os dias subsequentes à morte do pai. Quando o real surge, insuportável, recorre-se a procedimentos de desvio, uma autopreservação emocional através das práticas religiosas: “(…) e eu, que nunca fui judia, quer dizer, que desde a adolescência ignorei a religião da minha família, me vi de repente cumprindo cada ritual com um alívio impensável alguns meses antes, como se tudo que eu quisesse ou precisasse naquele momento fosse que simplesmente me dissessem como me portar ou o que fazer, que me dessem uma lista de tarefas para existir.”

Assim como é referido, na história, o pai falecido – Artur – como um “mestre da atitude”, poderíamos definir Natalia Timerman em sua dicção sobre o luto. Há uma serenidade que sustenta os gestos, não os faz resvalarem em desespero. A repetição, novamente ressaltamos, é apaziguadora. Por meio dos costumes ancestrais, recupera-se um espaço de conforto: “(…) pela primeira vez me senti amparada pela religião, não por Deus, mas pelos meus antepassados, que conheciam a dor que eu sentia e haviam inventado rituais que tentavam acolhê-la, amenizá-la, circunscrevê-la”.

Essa estratégia de passar pelo simbólico afasta a devastação de uma realidade dura demais, da qual a própria linguagem não dá conta: “(…) a dor que eu comunicava não era a mesma que eu sentia, há um abismo entre ambas, mas as cerimônias são um teatro necessário, pois por trás delas não há nada, é isto a morte, nada, e isso não é possível suportar”.

Na segunda parte d’As pequenas chances, a convergência com o ensaio filosófico atinge seu maior grau, quando a autora comenta: “Uma das dores do luto é se deparar não apenas com o fim da vida, mas com o fim definitivo da história, que não pode ganhar do futuro novos significados e versões, apenas do passado. Então buscamos novas versões do passado como se fosse um jeito de a história continuar.” Parece que lemos, num palimpsesto, Kierkegaard: “(…) o que existiu começa a existir agora de novo. Sem a categoria da memória ou da repetição, a vida se dissolve num estrépito vão e vazio”.

A morte é um tema infinito, sabemos. Há bastante especificidade no relato de As pequenas chances: ocorrências biográficas, topológicas etc. Platão dizia que o conhecimento é uma recordação e, nesse sentido, ao recordar-se do pai, nas minúcias e nas cenas repassadas pela memória, Natalia Timerman o conhece profundamente, restaura a sua intimidade com ele. Para além dessa perspectiva, porém, o romance dá um salto para a abordagem de um sofrimento comunal – na medida em que a perda de familiares é uma situação enfrentada por praticamente todas as pessoas.

Há uma identificação com o processo de luto, com a raiva surda contra “as amenidades que parecem um desperdício” e com o pasmo diante “da ciência da aberração do meu corpo, de ter um corpo”, de participar desse esquema vital que um dia se finaliza. A própria percepção do tempo se modifica, com a constatação de que “o ‘jamais’ pode ser quebrado pela realidade, mas o ‘nunca mais’, não”.

Se repetir é do interesse da metafísica, conforme queria Kierkegaard, podemos concluir que recordar os mortos é uma forma não somente de manter o nosso amor por eles, mas também um modo de construir um “contato efetivo com a ideia de eternidade”.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de novembro de 2023)

O riso cruel de Nabokov

Lições sobre Dom Quixote (Fósforo, 2023, tradução de Jorio Dauster), é mais um livro que reúne as aulas de Vladimir Nabokov. Eu já conhecia o seu formidável Lições de literatura russa, e cheguei a este novo título com o mesmo afã de consolo que aplicara ao anterior: como, por razões fora de meu controle (a saber, época e local de nascimento), eu não tivera a chance de ser aluna desse magistral autor, pelo menos acessava o seu pensamento didático através de um texto escrito.

O volume reúne a série de aulas sobre a obra de Cervantes, que Nabokov preparou para atuar como professor visitante na Universidade Harvard no semestre de primavera do ano acadêmico 1951-2.

No prefácio, Guy Davenfort comenta que, durante a fase de revisionismo crítico, Nabokov percebeu como “ao longo dos anos os professores norte-americanos haviam amansado o velho livro rude e cruel, transformando-o num mito bem-educado e excêntrico sobre as aparências e a realidade. Por isso, antes de tudo, ele tinha de revelar para seus alunos o texto que se encontrava sob a camada de preciosismo enganador criada por uma longa tradição”. (p.13) Assim, logo no início o escritor adverte: “Terei bastante a dizer mais tarde acerca da brutalidade do livro e da curiosa atitude com relação à crueldade da maior parte dos entendidos e dos leigos, que o veem como uma obra marcada pela bondade e pela comiseração.” (p.39)

Dom Quixote afasta-se da vida real: não tem propósito de verossimilhança e se desenrola em confusões geográficas, ao longo de um tempo mal definido. Existe, por exemplo, um percurso turístico baseado nas aventuras do protagonista. Antes de comprar uma passagem sob a sedução desse roteiro literário, vejamos a advertência de Nabokov: “O cenário balouçante de Dom Quixote é ficção – e, aliás, bem insatisfatória. Com suas ridículas hospedarias repletas de personagens tardios de romances italianos e suas ridículas montanhas cheias de poetastros mal-amados sob o disfarce de pastores arcadianos, o quadro que Cervantes pinta do campo é tão autêntico e típico da Espanha do século 17 quanto o Papai Noel é autêntico e típico do polo Norte do século 20. Na verdade, Cervantes parece conhecer tão pouco a Espanha quanto Gógol conhecia a Rússia central.” (p.24)

Mas o grande caráter alegórico do livro concentra-se na composição de seus personagens: “O velho de Cervantes, que havia lido tanto a aponto de enlouquecer, bem como seu malcheiroso escudeiro foram criados para ser objeto de zombaria. Bem cedo os leitores e críticos começaram a contornar essa diversão espanhola e interpretar a história como outra espécie de sátira: aquela em que uma alma sadia e humana em essência pode parecer insana num mundo crasso e nada romântico.” (p.15)

Contra os docentes preguiçosos, que apenas se contentam em repetir o argumento da sátira, Nabokov escancara os argumentos, retirados de pesquisas fundamentadas: “Quero ressaltar a circunstância de, nos romances de cavalaria, nem tudo serem damas, rosas e brasões, mas haver cenas em que coisas vergonhosas e grotescas aconteciam àqueles cavaleiros, fazendo com que sofressem as mesmas humilhações e feitiços que Dom Quixote. Em suma, Dom Quixote não pode ser considerado uma distorção de tais romances, e sim sua continuação lógica, com os elementos de loucura, vergonha e mistificação incrementados.” (p.83)

Entretanto, nestas aulas o objetivo principal do autor russo consiste em “apontar para a crueldade contida na suposta comicidade do texto” (p.119). Vale a pena citar o seu comentário: “Ambas as partes de Dom Quixote constituem uma verdadeira enciclopédia de crueldade. Sob essa perspectiva, é um dos livros mais amargos e bárbaros jamais escritos. E sua crueldade é artística. Os incríveis comentaristas que se valem de sua posição acadêmica a fim de falar sobre a humorística e piedosa atmosfera cristã do livro, sobre um mundo feliz onde ‘tudo é adoçado pela delicadeza humana do amor e do bem’, em especial os que se referem a certa ‘bondosa duquesa’ que ‘acolhe’ o Dom na segunda parte – esses borbulhantes peritos provavelmente andaram lendo algum outro livro ou enxergaram através de uma gaze cor-de-rosa o mundo brutal do romance de Cervantes” (pp.90-1)

A denúncia de Nabokov se volta não apenas contra a displicência dos acadêmicos, que perpetuam erros por consultarem muito mais a interpretação de seus pares do que o próprio texto literário: critica-se também o horror que essa comicidade representa. A consciência do autor de Lolita se impõe de um modo extremamente atual: “Aqui e ali, crianças com deficiências ainda são tão meticulosamente torturadas por seus colegas em nossas escolas quanto o infantilizado Quixote foi torturado por seus feiticeiros, aqui e ali vagabundos pretos ou brancos recebem pontapés nos tornozelos de parrudos policiais, tal como o vagabundo na armadura e seu escudeiro foram agredidos nas estradas da Espanha.” (p.95)

Em outro momento de sua análise, Nabokov contabiliza as vitórias e derrotas do protagonista ao modo de uma partida de tênis. Seu principal impulso é desmascarar afirmações absurdas da crítica literária: “Em bem conhecido ensaio sobre Cervantes, certo comentarista afirma que, durante sua longa série de batalhas, ‘nunca acontece de [Dom Quixote] vencer’. Obviamente, qualquer pessoa deve ler um livro para escrever sobre ele. Temos condições de refutar a afirmativa incompreensível desse comentarista.” (p.135) O crítico – Joseph Wood Krutch, referido em nota de rodapé – é surrado por uma análise minuciosa, feita capítulo a capítulo do romance, e que prova um empate: “Esse equilíbrio de vitórias e derrotas é muito surpreendente no que parece ser uma obra desconjuntada, sem planejamento. Deve-se a um senso literário secreto, à intuição harmoniosa do artista.” (pp.158-9)

Numa época em que abundam fake news, tanto quanto interpretações tendenciosas, fora de contexto e direcionadas para o engano, as lições de Nabokov vão além da análise de um romance. Elas recordam a importância da autonomia no ato de ler: é perigoso referendar, sem uma experiência direta, o que foi dito a respeito de algo; não podemos nos convencer da qualidade (boa ou má) de um texto, nem de suas características primordiais, se não o conhecemos de fato. A autopropaganda que circula pelas mídias hoje segue a máxima do “finja até ser verdade” – e imagino que Nabokov, contra esses charlatães, também ergueria o seu riso cruel, quixotesco, desmontando a farsa.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de outubro de 2023)

Imagem e ficção: últimas 2 vagas

Ainda restam 2 vagas para o meu curso Imagem e Ficção, que começa nesta terça-feira, na Escrevedeira.

Quem quiser se inscrever pode usar o link abaixo:

https://escrevedeira.com.br/produto/imagem-e-ficcao?gclid=EAIaIQobChMIpYu1goqggQMVDkeRCh0ZiwCREAAYASAAEgJOJPD_BwE

SINOPSE

A capacidade de despertar e manejar imagens é um dos principais poderes da literatura, explorado das mais diversas formas por escritores de todos os tempos e lugares. A compreensão das interações entre palavra e imagem permite um aproveitamento maior da leitura e é também um estímulo à criação.  

Destacando a obra de autores como Vladimir Nabokov, Olga Tokarczuk, Herta Müller e Wiszlawa Szymborska, este curso parte de uma série de construções imagéticas na literatura para apresentar e discutir os gêneros visuais como trampolim para a criação literária. Ao longo dos encontros, os trechos selecionados de obras de vários autores são a base para um estudo comparado que associa maneiras de identificar e classificar os tipos de imagens e as formas do texto literário, observando aspectos da composição de personagens, cenários e metáforas de alta eficácia.